Lealdade
O ciclismo atinge, nesta altura do ano, com a Volta a França – a maior prova do mundo, ao nível dos grandes acontecimentos noutras modalidades – o estatuto de rei das modalidades desportivas, concentrando a atenção mediática mundial.
Se há modalidade que se alimente dos seus ídolos, os heróis que arrastam multidões e que incendeiam paixões que explodem em rivalidades muitas vezes levadas aos extremos, essa é o ciclismo. Parece-me que apenas o automobilismo, e a fórmula 1 em particular, lhe poderá disputar essa condição.
O ciclismo vive, e é essa a sua história, de duelos. De duelos individuais onde se projectam as paixões que dividem os adeptos. Tudo é visto à luz desta tão simples realidade!
Depois de dois anos de afastamento, por decisão precipitada de pôr fim a uma carreira inigualável de sete vitórias consecutivas na Volta a França, o americano Lance Amstrong regressaria no ano passado. Marcado estava já o duelo com o espanhol Alberto Contador. A idade, também a interrupção da carreira e, por que não, os incidentes próprios da corrida, afastariam este enormíssimo campeão do duelo com o espanhol. Intrometer-se-ia um jovem luxemburguês que puxaria para si o papel de principal desafiador do espanhol: Andy Schleck.
A corrida deste ano transformou-se num extraordinário duelo entre Contador e Schleck que, entretanto, surgiria com alguns handicaps. O maior foi mesmo o abandono, por sucessão de quedas, do seu irmão Frank que, para além de excelente ciclista, seria o esteio do seu apoio de equipa.
Um duelo de gigantes que se vinha desenrolando diariamente, montanha atrás de montanha, com o jovem luxemburguês, apesar de um evidente menor apoio da sua equipa, a ganhar ligeira vantagem e a tomar a maior parte das iniciativas de ataque. Tinha a camisola amarela com uma ligeira vantagem de 31 segundos que, segundo os entendidos, era muito curta para o último assalto: o contra relógio de sábado, onde Contador será teoricamente mais forte.
Ontem, em plenos Pirinéus, Andy Schleck continuava a ser o dono da iniciativa. De repente desencadeia um ataque. Fortíssimo, ao que parecia. Contador não reagiu de imediato e parecia ficar para trás. Era um seu colega de equipa quem respondia quando se solta a corrente da bicicleta do luxemburguês. Não tem alternativa, tem que parar e tentar remediar a avaria. Enquanto isto Contador contra ataca, apoiado no seu colega de equipa e em mais dois interessados: o terceiro e o quarto da classificação geral.
Andy Schleck, apesar de uma corrida épica, em especial aquele resto da subida onde, completamente sozinho, ia passando por tudo e por todos, perde 39 segundos. Os 31 que tinha de vantagem passavam para 8 de desvantagem. A camisola amarela passa para Alberto Contador que, ao vesti-la, vê os aplausos substituírem-se por assobios e apupos.
A atitude de Contador, que não respondera ao ataque frontal e corajoso do seu o adversário mas que logo o soube atacar quando o viu impedido de reagir, recebia a reprovação do público. Perante esta reacção defendeu-se da pior forma: não tinha visto! Vendo que tinha escolhido a pior das formas de se defender, acabaria a pedir desculpa e a penalizar-se pela deslealdade.
Independentemente das opiniões de facção – claro que “Contadoristas” e “Schleckistas”têm opiniões contrárias – mais que a questão do desportivismo e do fair play, levanta-se claramente a questão da deslealdade. É que, ao contrário das respeitáveis opiniões de muitos especialistas, entre os quais Marco Chagas (não quero acusá-lo de “Contadorista” mas é estranho que ache que o público apupa Contador e aplaude Schleck só porque um é espanhol e outro luxemburguês), defender que há aqui um problema de deslealdade não significa dizer que Contador tinha alguma obrigação de parar e ficar à espera de Schleck. Não tinha nem me parece defensável que a tivesse. A alternativa não era essa. Seria sim a de manter as condições da corrida, ficando o adversário com a obrigação de recuperar de um incidente de corrida. O que Contador fez foi bem diferente: aproveitou-se da infelicidade do adversário e atacou. E fê-lo em condições de dinamizar e gerir apoios de que tirou vantagens!
E isto é desleal. Goste-se mais de Contador ou de Schleck! E é por isto que cada vez que o Contador vestir a camisola amarela o público há-de assobiar! Até Paris!
A lealdade é um dos mais rarefeitos valores das sociedades actuais. Os fins justificam os meios. Os interesses pessoais sobrepõem-se a tudo, já só resta a lealdade dos interesses: aquela deplorável lealdade canina (não confundir com a lealdade dos cães, a mais nobre das lealdades) e subserviente. A outra, a da honra e da coragem, essa desapareceu!