10 de Junho - um pontapé no bafio
Foi o décimo, e último, discurso do Presidente Marcelo no 10 de Junho, desta vez em Lagos, onde condecorou Ramalho Eanes com o grande-colar da Ordem Militar de Avis, a mais alta condecoração do Estado reservada a militares.
O discurso soou a fim de ciclo. Foi curto, mas ainda assim sem fugir a banalidades, redondas (“Ser português é ser universal. Temos uma forma singular de estar no mundo”, "Não há quem possa dizer quem é mais puro e português do que qualquer outro"), e pouco interessantes. Mais banal e menos interessante porque se sucedeu imediatamente ao notável e disruptivo discurso de Lídia Jorge, a escritora e Conselheira de Estado que presidiu às comemorações.
Falou de Lagos como ponto de partida para a epopeia que Camões cantou, mas também como ponto de chegada da indignidade. De onde partiram marinheiros à descoberta de novos mundos, mas onde chegaram homens roubados da sua dimensão humana.
"Sobre este areais aconteceram acontecimentos decisivos para o mundo" - disse, incluindo neles a escravatura, exportada para o mundo a partir precisamente dali. Em tempos de ódio ao estrangeiro como os que vivemos, Lídia Jorge lembrou partes esquecidas da nossa História. E lembrou que "em pleno século XVII cerca de 10% da população portuguesa teria origem africana – população que os portugueses tinham trazido arrastados”.
Citou Shakespeare, Camões e Cervantes, “três autores perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência”. Num "poder demente aliado ao triunfalismo tecnológico", que faz dos cidadãos apenas "público que assiste a espectáculos em ecrãs de bolso" resignados à condição "de seguidores" de "ídolos fantasmas”.
Que pontapé no bafio, Lídia Jorge!