Caldo explosivo*
Ainda as televisões se entretinham, e entretinham os portugueses, com sucessivos folhetins da entrega e captura do fugitivo mais famoso dos últimos tempos quando, de repente, lançam o país em mais uma repugnante novela, a partir de inacreditáveis imagens captadas nas profundezas de um estádio de futebol.
Dir-se-á que são notícia e que, sendo notícia, teriam que ser divulgadas. Será que é assim?
Vamos lá por partes: essas imagens, que a todos nos deveriam envergonhar, e em especial aos protagonistas, foram obtidas a partir de câmaras de vigilância instaladas no local. Que teriam de ser requisitadas pelas entidades com competência para julgar os factos que tinham chegado ao conhecimento público. Exactamente para isso: para analisar, julgar e punir o que se apurasse ter acontecido. E que estavam à guarda do proprietário dos respectivos equipamentos e instalações: exactamente uma das partes. É, por isso, tudo menos normal que tenham ido parar às mãos de uma estação de televisão. Normal seria que, apenas e só, tivessem ido direitinhas, e na íntegra, parar às mãos da entidade competente para julgar os factos. Depois de as ter solicitado, evidentemente...
Este simples raciocínio deixa claro, e sem grandes dúvidas, que a divulgação dessas imagens não tem nada a ver com notícia. Tem a ver com interesses particulares. Nunca, em nenhuma circunstância, são interesses particulares a determinar o que é notícia. Apenas a relevância para o interesse público justifica a notícia!
Os interesses particulares são evidentes: de um lado uma das partes, que as selecciona e entrega em favor da sua posição de parte; do outro uma estação televisiva, que quer tirar partido em audiências da sua divulgação em exclusivo, mesmo que prestando-se a todo o tipo de manipulação, em violação clara dos deveres de ética e de deontologia.
Seguiu-se depois a esquizofrenia do absurdo à volta dessas imagens. Promovida pela mesma estação e por todas as outras, transformando-as no assunto mais importante do país, com infindáveis comentários e debates, cada um mais imbecil que o outro. Com comentadores e paineleiros para todos os gostos, cada um mais deprimente que o do lado. As redes sociais fizeram o resto e o país parou: não se falou, e não de fala, noutra coisa. A cega e acéfala clubite é apenas a pitada de tempero final neste caldo de cultura explosivo.
A conclusão é simples: pior que os energúmenos que protagonizam aquelas imagens, só as televisões que moldam em segredo este país. Os resultados já estão aí, à vista. O sucesso do populismo é feito deste caldo!
* Da minha crónica de hoje na Cister FM