A onda
Convidado: Luís Fialho de Almeida
Há muito que somos arrastados, dia após dia, numa onda de decadência que nos leva as expectativas e a confiança na governação do país. Levámos mais de quatro décadas de ditadura a fortalecer a esperança que um dia o estado tirano seria substituído por um estado garante da uma cidadania activa, com livre iniciativa económica e cultural, integrante de uma sociedade mais justa e próspera. Mas também já levamos quase quatro décadas a destruir a esperança, pela corrosão do tecido social e do aparelho produtivo, destruindo a classe média e agravando assimetrias entre estratos económicos e sociais.
É reconhecido que o sistema político e da justiça está refém do sistema financeiro. Alguns, de forma mais dura e contundente, lamentam ver a democracia a ser inquinada pela cleptocracia. Igualmente, lamenta-se ver que muitos dos arautos da liberdade e defensores dos valores democratas, são os mesmos que manipulam a sociedade e a destroem.
Também a história nos ensina que os períodos de enorme perturbação social: com fome, desemprego, injustiças sociais, desilusão política, são propícios ao renascimento de movimentos redentores, capazes de motivar descontentes e indignados, mas que os poderão levar para caminhos indesejáveis.
A nossa habitual passividade e a emigração - outrora de esfomeados e pouco instruídos, mas agora de jovens com elevado nível de instrução - ajudam a reduzir o potencial detonador de rebeldias, mas o agravar do descontentamento não afasta, de todo, a conflitualidade capaz de libertar os gritos violentos que andam abafados.
Tal como o surfista não resiste à onda porque o apelo supera a vontade, os oprimidos, sem acesso aos bens essenciais e à dignidade, não resistirão ao apelo de ordem superior que lhes dê autoestima e um sentido para a vida. Se alguém vier com um discurso político impregnado de um ideal, de uma causa maior que resgate os oprimidos de tiranias, oferecendo-lhes o pão e um sentido de vida que se perdeu ou nunca se teve, poderá agigantar uma onda de mobilizados por um ideal de superioridade, mesmo que a razão se aniquile, e os pensadores da razão deixem de pensar, como fez Heidegger ao pactuar com o nazismo.
Hitler encontrou no seu mentor, Dietrich Eckart, a base ideológica capaz de arrebatar milhões de alemães para um movimento purificador e construtor de uma sociedade nova, à custa dos maiores crimes contra a humanidade.
Sabemos, também, o poder das marcas que ficam no crescimento e na formação do ser humano. Os órfãos de guerra, que crescem com as feridas dolorosas de assistirem ao genocídio que lhes levou os pais ou irmãos, poderão ser potenciais terroristas. Os órfãos de pátria, sem valores de referência, sem emprego, sem objectivos, são facilmente manipuláveis se alguém lhes oferece uma causa, uma ideologia, um sentido de utilidade, mas também a unidade e o colectivo como força.
Numa sociedade em desagregação, aqui e na Europa: os ricos crescem em número e riqueza e poderão ter armas para sua defesa; os pobres cada vez mais pobres e em maior número terão cada vez mais ódio. “Nunca se sabe o que uma multidão com fome pode fazer” – Nuno Júdice, in “A Implosão”, edição D. Quixote.
“A Onda” é um filme que relata um caso verídico passado numa escola com um professor que durante uma semana dirige, na sua turma, um exercício de autocracia, experimentando, ele próprio, a transformação num líder e deste num ditador, enquanto os seus alunos são facilmente manipulados numa onda de cariz fascista da qual ele perde o controlo. É um filme para ver e reflectir à luz dos problemas actuais de deterioração dos ideais democráticos e do fortalecimento de movimentos radicais de direita, por vezes com incursões no racismo e na violência, num contexto de falência dos estados provocada pela globalização.
Nota: O filme “A Onda” passou em Lisboa há anos, encontra-se agora nos clubes de vídeo, mas também é possível ver pesquisando sem sair de casa.