24 HORAS
Por Joana Louro *
Acabei de cumprir mais uma urgência de 24 horas! Há umas 24 horas mais longas que outras... Este foi um daqueles bancos de 24 horas, mas das longas! Depois de “passar o banco” à equipa médica que entrava fresquinha para uma outra maratona de 24 horas, aquela sensação de sempre, que se repete após cada passagem de testemunho: do dever cumprido que tranquiliza o espírito e que tem o estranho poder de transformar um cansaço imenso numa agradável sensação de bem-estar.
Sempre gostei de fazer urgência. Pelo desafio clínico único, diagnóstico e terapêutico e, naturalmente, pelo imediatismo dos resultados, bem distinto do de outras áreas da medicina, como o internamento ou a consulta. Na urgência pensa-se, decide-se e intervém-se rapidamente. E este conjunto de acções rápidas, e idealmente eficazes, pode salvar vidas. O que transforma o trabalho em urgência em algo particularmente apaixonante.
Mas as urgências dos hospitais têm mudado muitas... mudanças que têm destruído muito do desafio médico de outros tempos. Vamos, eu e muitos colegas, tentando encontrar fórmulas que possam contrariar algum desencanto e ajudar a descobrir novos desafios.
Os Serviços de Urgência (SU) dos hospitais são uma porta aberta 24 horas por dia, sete dias por semana. Sem barreiras, onde não se recusa qualquer entrada e a que todas as pessoas têm acesso. Cidadãos legais ou não, gente com queixas clínicas ou não, com situações urgentes ou não. Que outro local apresenta estas características? Nenhum! Estas particularidades têm tornado, por este pais fora, os SU na única solução para muitos problemas de muitas pessoas, esquecendo, ignorando ou mesmo desprezando que o uso negligente e abusivo deste recurso enfraquece a qualidade dos cuidados de saúde e prejudica quem está realmente doente!
Neste meu último banco recebi doentes que foram enviados numa ambulância para o hospital com uma queixa inventada. Após inúmeras tentativas de contacto, os familiares lá deixam escapar que, afinal, não existia nenhuma situação clínica. Simplesmente não querem o doente em casa! Outros acumulam dezenas de passagens pela urgência sem qualquer episódio agudo, apenas porque aquela é a única porta aberta que nunca lhe recusa o atendimento. E atenção! A única saída que encontraram para combater o abandono e a solidão, o único local onde sabem ir encontrar pessoas que lhes falem. Ou que apenas as ouvem!
E tantos outros que ali vão deixar o último suspiro. Por ignorância, por medo, por falta de formação, por falta de humanismo ou por falta de amor dos que lhes são mais próximos. Cada vez há mais doentes que entram na urgência para se despedir deste mundo, simplesmente porque chegou a hora deles. Não precisam de assistência médica, apenas de paz, dignidade e de um mínimo de amparo no momento de partida. Coisas que, por mais que nos esforcemos, não existem num SU. Coisa que, por mais que tentemos, não conseguimos corrigir!
É de tudo isto que se faz um SU de 24 horas. Desta vez foram cinco as pessoas que, chegada a hora da partida, viram negado o direito ao último suspiro na tranquilidade do seu lar, na companhia e com o amparo dos seus. E é por tudo isto que há 24 horas que são maiores que outras!
* Publicado hoje no Jornal de Leiria