MAIS FLASHES
Por Eduardo Louro
A verdade é que nem sempre tudo corre bem. Às vezes há imponderáveis que são capazes de fazer correr mal - ou mesmo muito mal – aquilo que tinha tudo para correr bem. Foi o caso: mais de três horas de espera!
A sala desta vez era outra. Maior e com uma configuração em L, estranha e, pareceu-me, pouco dada ao exercício preferido dos portugueses nestas circunstâncias: a conversa, em especial a conversa sobre doenças. As que têm e as que imaginam ter. Fui passando os olhos por toda aquela fauna bem própria deste habitat. Algumas personagens destoam: mulheres altas e louras, bem encorpadas e de olhos claros. Invariavelmente com crianças! Mulheres e crianças, a deixar a ideia que naqueles imigrantes do leste europeu os homens não têm tempo para adoecer. Apenas para trabalhar e garantir o sustento da família!
O ritmo de chamadas é grande: “serviço M - senha 123 – gabinete 214”! A voz é agradável e repete a chamada enquanto um monitor se esforça por captar a atenção da sala com o piscar sucessivo e rápido da mesma informação. Sem qualquer ordem! A sequência, conforme também explica o mesmo monitor, é por ordem de marcação da consulta, e não de chegada, ou qualquer outra! À senha 123 não se seguirá a 124!
É como se toda aquela gente estivesse de olhos vendados, a jogar à cabra-cega o que, começo então a perceber, explica - mais que a configuração da sala – a desmobilização geral. É isso, as pessoas estão tão suspensas da cadência daquela voz e da do piscar daquele ecrã que nem lhes dá para conversar.
Mesmo assim sinto o assédio: um olhar, um desabafo ou uma tirada mais ou menos provocatória. Porque não é só para dançar o tango que, como descobriu alguém que bem conhecemos (e aqui cumpro uma pausa de silêncio em respeito pela dor de alguém que, em pouco mais de duas semanas, perdeu o pai e um irmão), são precisos dois. Para a conversa também!
Resisti – confesso que entre desconhecidos não é nada fácil arrancarem-me uma palavra – mas, como sempre acontece, o que uns rejeitam outros desejam. “Venho para a consulta de diabetes; o que me vale é que é só de 6 em 6 meses” – lançou a rapariga de 34 anos, como ela própria se intitularia pouco depois:”sou uma rapariga nova – sim, só tenho 34 anos – e já tenho tantas doenças”, sem contudo adiantar mais nenhuma.
“Eu tenho açúcar a menos, vim com o meu pai, que tem açúcar a mais, porque eu, ao médico, só vou ao do seguro”, reponde, formando-se finalmente o par, um homem de 39 anos, confirmados da mesma forma:”eu tenho 39 anos e no fim do ano vou para a reforma; até aos 65 estou safo”! Trabalha numa serração de madeiras onde, pelo que foi dado perceber, teve a sorte de sofrer um acidente de trabalho de que, à vista, não sobram sequelas: “se não tivessem desligado a máquina todo eu tinha sido feito em salsichas”!
Ela está desempregada há mais de dois anos. E sem qualquer subsídio. “Não fosse o marido…” Tem portanto marido. E duas filhas pequenas que não lhe permitem regressar à sua antiga actividade: motorista de camion, nos transportes internacionais. “Se lá fosse pedir emprego voltavam a aceitar-me. É disso que eu gosto. Saía-me do corpo mas ganhava muito bem. Depois casei…”
“Pois, agora há muitas mulheres nessa vida. Não a queria para mim! Mas olhe que isso agora não está bom, eu conheço uns imigrantes do leste que andam nisso e dizem que está mau”- respondeu-lhe ele!
A conversa passara já pelo custo de vida, pelos combustíveis e, daí, por carros. Ele tinha um carro de alta cilindrada: um Xantia, 1600, que apenas conseguia manter porque não precisava de o usar. “Trabalho portão com portão e, ao fim-de-semana, só saio no Verão. No inverno não saio de casa”. O Xantia - para quem ligue pouco a automóveis – é o modelo topo de gama (a indústria automóvel alemã provocou nos últimos 20 anos um downgradind generalizado dos modelos de topo dos restantes construtores) da Citroen dos anos 90, o antecessor do actual C5. Ela tinha um pequeno velho utilitário, a gás: “como anda pouco não lhe compensa meter a gás, mas a mim compensa, que ando muito”!
“Serviço A - senha 105 – gabinete 202” – ouviu-se. Ela levantou-se e dirigiu-se apressadamente para a porta em frente. A conversa acabou ali mesmo, sincopada, sem uma despedida. Nem um último olhar!
A conversa é descartável. Como as pessoas!
Acho que é por isso que ninguém me consegue arrancar uma palavra, por maior que seja o assédio!