Depois de os bancos andarem anos e anos à procura de ver alguma coisa dos mil milhões de euros do calote de Berardo, agora é o "comendador" que vai para para os tribunais reclamar deles o dinheiro que deles recebeu e nunca pagou.
O “empresário que nada deve a Portugal e a quem Portugal tanto deve” - nas suas próprias palavras - entrou hoje com uma acção de 900 milhões de euros contra CGD, BCP e Novo Banco, mas também o BES. O rol de testemunhas que apresentou é do melhor que há - António Costa, Pedro Siza Viera, Graça Fonseca e Mário Centeno.
É sempre assim. São sempre avisados. Umas vezes vão até Vigo, e esperam por lá que passe. Desta vez eram buscas mais que anunciadas; ainda assim nada como uma última vista de olhos, não fosse qualquer coisa ter ficado esquecida em casa.
Tarde - mas mais vale tarde do que nunca -, o Conselho Superior de Magistratura fez o que tinha a fazer: vedar ao tal Rui Fonseca e Castro o exercício da magistratura judicial, por decisão unânime.
Assistimos ao surgimento desta tóxica personagem no panorama mediático e perguntávamo-nos, mais do que como era possível que, depois de tantas, tão repetidas e tão graves infracções se mantivesse em funções, como teria sido possível tão repugnante criatura ter passado por todos os crivos e chegado a ser juiz.
Não me parece muito difícil perceber que a personagem tenha aproveitado estes últimos tempos para se projectar e ganhar protagonismo e notoriedade para qualquer coisa mais. Por exemplo, para lançar um novo partido para o lamaçal que o André Ventura tem andado a desbravar.
Para isso tem legitimidade. Curiosamente, a que a democracia e o Estado de Direito, que ele próprio permanentemente afronta, lhe garante. Para julgar pessoas é que, evidentemente, não!
Se calhar é aqui, e não em todas as outras circunstância em que é usada, que a velha frase batida tem sentido: "à Justiça o que é da Justiça; à política o que é da política"!
Fugiu - em legítima defesa, diz ele. Não há fugas legítimas, mas há fugas permitidas. Esta foi uma delas, curiosamente dada a conhecer no dia em que voltava a ser condenado a mais uma pena de prisão efectiva. Ainda não é desta que um banqueiro é preso em Portugal, depois de tudo o que se tem visto que tantos fizeram.
O mais chocante é que se trata uma fuga anunciada. E pelo próprio. Mas nem isso levou a Justiça portuguesa a achá-la provável, e a determinar medidas para a evitar. E para evitar mais um passo gigante na sua própria descredibilização. Mais um, apenas mais um!
Ontem, no julgamento em Santarém, o Ministério Público, que há três anos o acusara de um conjunto de crimes (no incrível processo do roubo das armas de Tancos), pediu a absolvição do ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes.
Faz alguma confusão que quem acusa depois defenda. Num julgamento acusação é acusação, e defesa é defesa. Acusação e defesa, faz confusão. Mas acontece algumas vezes. Não é esta a primeira; nem será a última.
Não é este no entanto o ponto. O meu ponto, evidentemente. É outro.
Não seria preciso que o Ministério Público passasse de acusação a defesa para que surgissem os clamores de injustiça (no sentido moral) reclamando pelo preço político e pessoal que Azeredo Lopes teve de pagar quando, quem o acusou, agora diz que estava enganado. O seu advogado, o meu velho amigo Germano Marques da Silva, com a autoridade que lhe vem da sua imensa competência e prestígio profissional, e evidentemente no seu papel, lançou desde logo a questão, mais ou menos nestes termos: e agora quem é que o vai ressarcir destes três anos de vida perdidos?
E fala-se de outros exemplos de carreiras políticas destruídas por acusações que depois não dão em nada, ou são mesmo retiradas, como aconteceu com Miguel Macedo, ministro de Passos Coelho, no caso dos vistos gold.
Parece-me que se estão a misturar alhos com bugalhos.
Responsabilidade política é uma coisa. Responsabilidade criminal é outra. Não é preciso cometer um crime para infringir princípios de idoneidade política de que não há como fugir. E que merecem sanção. Quando de fala de "à Justiça o que é da Justiça, e à Política o que é da Política", é disto precisamente que se fala.
A Justiça só pode condenar com provas. Absolve - e bem, num estado de direito é assim que funciona - mesmo que existam todos os indícios da prática do crime, se não houver prova inequívoca de que foi praticado. A política não pode - nem deve - funcionar assim. Nem pode reabilitar ninguém só porque não foi condenado pela Justiça pelo que ela não pode condenar.
Não sabemos no que vai dar, mas a detenção de Joe Berardo e do seu advogado surge como uma lufada de ar que entra por uma janela que se entreabre numa sala congestionada de ar absolutamente irrespirável.
Depois dos desfiles pelas comissões parlamentares de inquérito, e das respectivas prestações televisivas, de tantas figuras de proa dos negócios em Portugal, iniciados até pelo próprio Berardo, o que mais faltava era que nada se passasse. Que ninguém, para além de nós todos, pudesse achar que não teria de haver alguma coisa a fazer.
Berardo é apenas o mais tóxico mito de um país saloio, de deslumbramento fácil. Recebeu comendas das mãos de insuspeitos e respeitados Presidentes da República, encheu horas de televisão e páginas de jornais e revistas. Fez os negócios que quis, como quis. Os bancos puseram-lhe nas mãos o dinheiro que quis, sem garantias.
Comprava acções com dinheiro dos bancos, garantidos por essas acções. Garantia o risco com o próprio risco, e os bancos achavam graça. De longe acenava-lhes com a famosa coleção de arte, mas só para a verem em exposição. E ria-se. Ria-se muito... E dizia "babe"... E que não devia nada... Que não tinha nada, nem medo de ninguém...
Claro que tudo isso já se passou há muito tempo. O tempo não volta para trás, passa pelas coisas e elas prescrevem. Não há meios ...
Mas há mais comendadores. E mais chicos-espertos que parecem parvos, e só por acaso não são comendadores.
Estava marcado para hoje o início do julgamento de Ricardo Salgado, desta vez no quadro da Operação Marquês. Mas não, ainda não foi desta.
Condenado a multas avultadas pelo Banco de Portugal, acusado de tudo e mais alguma coisa no caso BES/GES, arguído no Processo Monte Branco, Salgado continua a passar pelos pingos de todas estas tempestades. Vai escapando ao pagamento das multas do Banco de Portugal, e fugindo com sucesso a sentar o rabo nos bancos dos tribunais. Das acusações de corrupção já está safo, o juiz Ivo Rosa tratou disso há pouco tempo.
Parecia que agora é que seria. Mas não. Ao marcar o início do julgamento para hoje, o juiz fê-lo dois dias antes de terminar o prazo de defesa. Por isso, não vale. Tem que se adiar.
Se calhar foi pressa. Mas lá está a velha sabedoria popular - a pressa dá sempre em vagar.
Temos visto de tudo para atrasar julgamentos até à desejada prescrição. Por pressa nunca se tinha visto.
Tendo a concordar que mais importante que o que resultar da aplicação da Justiça no caso Marquês - mesmo que continue a considerar que a resposta célere e clara da Justiça é fundamental em democracia e no Estado de Direito - é, no particular que respeita a Sócrates, o que já resultou na condenação política, ética e comportamental do antigo primeiro-ministro.
Se, sobre essas três dimensões, raras dúvidas subsistiam no final da sua governação, e muitíssimo poucas até aqui, nenhuma hoje sobra, depois do que se seguiu à pronúncia de instrução, com todas as questões jurídicas que levanta, e que são muitas, como se tem visto.
A condenação política, ética e comportamental de José Sócrates, como pessoa e cidadão que ocupou durante seis anos o mais alto cargo executivo do Estado, é hoje unânime, incontroversa e definitiva.
Falta no entanto talvez o mais importante - perceber como foi possível o país ter estado nas mãos de uma personagem destas e, mais importante ainda, perceber se está ou não afastado o risco de entregarmos o poder a pessoas desse calibre.
Quando coloco a questão nestes termos estou a colocá-la em termos gerais, o que significa que estou a convocar os partidos políticos - todos - mas também os cidadãos. Todos. É no entanto evidente que o PS tem aqui um papel muito particular, porque foi na sua esfera que tudo aconteceu.
Se é estranho, e perturbador, o silêncio institucional da maior parte dos partidos nesta questão, é de todo intranquilizante a falta de uma reacção clara e inequívoca do PS. Do partido, mas também das seus dirigentes que mais próximos estiveram de Sócrates, e que hoje se mantêm nas mais altas esferas da actividade política, e do poder.
Todos sabemos o que Augusto Santos Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros do actual e do anterior governos de António Costa, foi ao lado de Sócrates. O papel de João Galamba, Secretário de Estado da Energia do actual governo, na corte de Sócrates. Ou, ainda acima de todos, do eurodeputado Pedro Silva Pereira. E ninguém fica tranquilo se eles não tiverem nada a dizer, como não têm. Ou não tiveram até aqui.
Dos mais próximos do núcleo duro de Sócrates, e que Costa também recuperou, apenas Vieira da Silva, talvez por já não fazer parte do actual governo, se pronunciou. Mas não foi mais longe que considerar "que o titular de um cargo público tem a obrigação ética e moral de explicar de forma clara a origem de todos os seus rendimentos com toda a transparência, clareza e rigor”, e que “se isso não for feito, estamos perante uma situação grave.” Ou seja, da excepção, veio pouco. Muito pouco.
E tivemos reacções fortes e sem paninhos quentes de Fernando Medina, que mereceram a mais violenta resposta de Sócrates, de quem fora Secretário de Estado de Sócrates. Mas quando o deputado e ex-líder da JS, Pedro Delgado Alves, disse qualquer coisa que pudesse abrir as portas ao que o País espera do PS, aludindo a “um processo de autocrítica relativamente ao que correu mal e não pode voltar a correr” e que o partido “deve encarar os fantasmas cara a cara para a democracia se proteger” a direcção do partido, pela voz de Ana Catarina Mendes, a líder parlamentar que é a voz de Costa, caiu-lhe em cima.
É isso. António Costa continua a achar que lhe basta a frase batida do "à justiça o que é da justiça, e à política o que é da política" para passar entre os pingos da chuva. Não passa, molha-se. Porque agora é de política que se trata. E da mais séria, não é daquela com que está habituado a brincar. De Justiça, por muito que não o compreenda, estamos entendidos. Aconteça o que acontecer.
Agora é "à política o que é da política". É preciso explicar como é que gente desta trepa pela pirâmide dos partidos acima. Que teias tece. Que redes cria. Como vive quem vai trepando até ao topo e, se for estranho, se lhes basta a resposta que o avô tinha volfrâmio, a mãe um cofre, e um amigo muito dinheiro para lhe emprestar.
É preciso dizer "fomos enganados" e "tudo faremos para não voltarmos a sê-lo". E é preciso que se deixem de tretas quando falam de declarações de rendimentos, de enriquecimento injustificado ou de incompatibilidades de titulares de cargos políticos.
Não. Não é. Não será, por muito que o dia de hoje fique a marcar a Justiça, a Política, a democracia e o país. Mesmo que a partir de hoje nada fique na mesma, todo este Processo da Operação Marquês vai ficar na mesma, à espera que tudo prescreva.
Hoje, a Justiça só pode evitar mais uma vergonha. Veremos se aproveita essa oportunidade minimalista.
O país ficou esta semana a conhecer a acusação a Ricardo Salgado, e com ela a saber mais um pouco das linhas com que durante tantos anos se coseu.
Na semana passada a EDP mostrou outro tanto. Em curso, e à espera que a sua hora chegue, estão outros tantos, com a Operação Marquês à cabeça. Irão mostrar mais dessas linhas e mais das teias que o regime teceu, com a certeza que os nomes são os mesmos. O país não é assim tão grande, e Ricardo Salgado era afinal “o dono disto tudo”.
Quando, nas raras vezes em que são confrontados com alguma coisa, os políticos se sentem incomodados com questões judiciais, logo respondem, como que a sacudir a água do capote, que “à Justiça o que é da Justiça, e à política o que é da política”.
Mesmo que tarde – e mais vale tarde que nunca, como recordou o Presidente da República – a Justiça está a responder. E se olharmos bem para a dimensão da acusação, para o nível de sofisticação e de complexidade do que está em causa, talvez aceitemos que, para descobrir aquilo tudo, cinco ou seis anos não seja tempo de mais.
Se o trabalho dos procuradores e de toda a investigação foi bem feito, acusação estiver solidamente sustentada em factos cabalmente provados, e o trabalho dos juízes vier a ser igualmente bem feito, a Justiça terá feito a sua parte.
Mas para que o país mude, e deixe definitivamente de ser o que a Justiça nos está a mostrar que é, não basta uma acusação, um julgamento e uma punição. Falta o resto. E o resto é limpar as teias, é fechar as portas giratórias e é introduzir ar fresco no sistema. O resto é … da política.
Justamente: “à política o que é da política”. Pena que daí não venham grandes sinais…
* A minha crónica de hoje na Cister FM
Acompanhe-nos
Pesquisar
Subscrever por e-mail
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.