A barbárie do vale tudo
Convidada: Clarisse Louro *
Se vivêssemos num país normal, com o mínimo de sentido crítico e de mobilização cívica, que não estivesse completamente sedado, na passada sexta-feira teria acontecido na Assembleia da República um dos maiores golpes nesta democracia de faz de conta que nos vai corroendo.
A aprovação de um referendo sobre a adopção e a co-adopção por casais do mesmo sexo, por 93 deputados do PSD, é um golpe baixo, uma canalhice e um insulto à democracia.
Porque pretende levar a referendo aquilo que há pouco mais de seis meses a Assembleia da República decidiu, para cancelar o respectivo processo legislativo. Porque fá-lo atrás de um escudo: a JSD não é mais que um escudo, porque a proposta foi aprovada pela Comissão Política do PSD, e o próprio Passos Coelho teve já que vir dar-lhe cobertura. Porque, numa matéria de consciência, impõe a disciplina de voto, obrigando deputados que haviam votado a favor da lei a votar agora nesta trapaça, e a declarações de voto indignas e vergonhosas. Haverá maior atentado à dignidade, maior achincalhamento, que um deputado dizer, justamente em matéria de consciência, que foi obrigado a votar contra a sua própria consciência? E finalmente, no que ao domínio processual respeita, pela hipocrisia que veio da bancada do outro parceiro de maioria. Que, manifestando-se contra a iniciativa, mais por razões de oportunidade política e financeira do que outras, viria pela abstenção, seguramente que imposta pela direcção do grupo parlamentar, a viabilizá-la.
Se no plano processual e no dos princípios e valores políticos a afronta é grande, não é menor no dos valores da emancipação cívica e civilizacionais.
Porque não se sujeita a referendo o exercício de direitos humanos. Porque, ao contrário do que o primeiro-ministro teve o desplante de afirmar, não é democracia referendar direitos de minorias. É por isso que existe a democracia representativa, e é por isso que as grandes conquistas da civilização que decorrem dos direitos das minorias andam à frente da sociedade.
Se não fosse assim ainda hoje haveria escravatura, porque as sociedades continuariam esclavagistas. As mulheres ainda não votariam. O divórcio seria proibido. A igualdade de género não passaria de uma miragem…
Escrevi aqui em Maio, nesta mesma minha coluna, aquando da aprovação da lei, que não iria então manifestar a minha opinião sobre a questão em si. Não sei se alguém estará recordado, mas na ocasião pretendi reflectir sobre a forma pacífica como a questão tinha passado na opinião pública.
Hoje, não. Vou deixar claro que acho que é o interesse supremo da criança que tem sempre de prevalecer. Que acho que uma família é uma família, independentemente da orientação sexual dos seus membros. Que acho que um homossexual não tem menos capacidade de amar e cuidar. Que ser pai ou ser mãe vai além do acto de procriar. E que, em particular a co-adopção, é uma questão básica e fundamental de direito!
A esta gente que tomou conta do poder não basta empobrecermo-nos da forma brutal que tem feito. Não basta privatizar, e depois fazer a lei sobre o que é estratégico para o país, quando já nada mais há para privatizar. Não basta cortar na educação e na saúde públicas, para entregar depois a privados, com negociatas e escândalos sempre impunes. Como alguma comunicação social algumas vezes ousa denunciar, para logo ser abafado. Como sucedeu com uma estação de televisão, na denúncia de práticas e ligações de um grupo privado na Educação. Ou com outra, que denunciou os escândalos da facturação à ADSE - que já começamos a pagar, com o agravamento das nossas contribuições, que nos reduzem ainda mais os sucessivamente reduzidos salários – e outras práticas e ligações perigosas do grupo, que entretanto inundava jornais e televisões com publicidade…Não basta cortar ordenados e pensões, enquanto entrega por ajuste directo negócios a uns amigos, e encaminha outros para os melhores lugares internacionais.
Não lhes basta tudo isto. Querem ainda obrigar-nos ao retrocesso civilizacional e à barbárie do vale tudo!
* Publicado hoje no Jornal de Leiria