A incompetência não é inconstitucional
Por Clarisse Louro *
Quando há uma semana foi conhecida a inconstitucionalidade de algumas medidas do Orçamento do Estado em vigor, a mais relevante das quais relativa aos cortes de salários na função pública, o governo, para quem a decisão não podia representar qualquer surpresa, de tão avisado que tinha sido, decidiu partir para o confronto violento com o Tribunal Constitucional.
Apostou na clássica estratégia de vitimização e pretendeu transmitir a ideia de que esta tinha sido a última gota, a que fez transbordar o copo da legitimidade que, não tendo de todo, pretende fazer crer que tem. O governo, e em especial o primeiro-ministro, quis dizer que não tolera mais obstáculos à sua governação. Quis esticar a corda, deixando a ideia que não se importa nada que ela parta.
O governo partiu para este confronto institucional, para esta guerra aberta com outro órgão de soberania, não porque aquela tenha sido a última gota que levou o copo a transbordar, mas apenas porque entende que as circunstâncias lhe são agora favoráveis, transformando em oportunidade a ameaça da inevitável crise no PS.
Este não deixa no entanto de ser o lado circunstancial de dois dados estruturais da governação de Passos Coelho: o desprezo pela Constituição e os mecanismos da sua política de ajustamento.
Logo que lhe cheirou a poder Passos Coelho anunciou a intenção de rever a Constituição. Foi, como se percebeu, aconselhado a desistir, mas isso só lhe fez crescer o desprezo. Também os mecanismos da sua política orçamental e de combate ao défice nos fazem recuar a esse tempo da campanha eleitoral de há três anos. Dizia então Passos Coelho que o combate ao défice se faria a partir do ataque às gorduras do Estado.
Não foi isso que fez, não que não encontrasse gorduras, mas porque não quis enfrentar os interesses que elas alimentam. Não se conhecem gorduras do Estado que tivessem sido cortadas, mesmo que identificadas pela Troika. Não tocou nos municípios, fez de conta que cortava alguma coisa mexendo apenas nas freguesias. Não tocou nas rendas da energia. De Institutos e Fundações cedo ficamos conversados. E a reforma do Estado ficou-se pelo inenarrável relatório de Portas… As imposições da Troika acabaram por se ficar pelos cortes de salários, pensões e serviços públicos e pela desregulação. Em especial das relações de trabalho e da legislação laboral…
O governo utilizou invariavelmente apenas e só dois instrumentos de ajustamento orçamental: cortes – salários, pensões e prestações sociais – e aumento de impostos, incluindo autênticos saques feitos aos contribuintes, a que depois chamam de eficiência fiscal. Partindo da fantasiada premissa de que os portugueses viviam acima das suas possibilidades, o governo impôs cortes nos salários da função pública justificando-os com o facto de os privados já terem ajustado, para depois criar um ciclo vicioso – com o sector privado a tomar os salários do público por referência contratual – de abaixamento generalizado dos salários.
A guerra aberta com o Tribunal Constitucional pode até ser servida como a gota de água que fez transbordar o copo. Mas não é mais do que a confissão explícita do falhanço da acção governativa no programa de ajustamento. Quando o governo e a vasta expressão mediática que o sustenta dizem que o Tribunal Constitucional só permite aumentar impostos, impedindo os cortes na despesa, não estão a fazer outra coisa que precisamente enfatizar que o governo não sabe, ou não quer, reduzir o défice orçamental se não cortando salários e aumentando impostos!
Pois, a incompetência não é inconstitucional…
* Hoje no Jornal de Leiria