A mácula do pecado original
O Presidente Marcelo confirmou a dissolução da Assembleia da República, e marcou eleições. Como não podia deixar de ser. Como não tinha alternativa, reafirmou.
Não tinha. Sem qualquer dúvida, depois do que ele próprio protagonizara nesta crise. Não havia passo atrás possível.
Não disse apenas que não havia alternativa. Disse também que não tinha qualquer responsabilidade na situação, que se limitara a constatar o óbvio - que a base de apoio partidário do governo se havia dissolvido. E que, também por isso, não lhe poderia ser assacada qualquer responsabilidade sobre a eventualidade de, das eleições que hoje marcou, não resultar uma solução governativa estável. Exactamente como ele próprio admite, e por isso lhe dedicou também algum tempo da sua mensagem. E como praticamente toda a gente prevê.
Marcou as eleições para 30 de Janeiro do próximo ano. Previsivelmente, também. A generalidade dos partidos tinham apontado a data de 16 de Janeiro. E sabe-se porquê. Como se sabe quem, do PSD, não queria essa data. E como se sabe que, de dentro destes, saíram movimentos influenciadores, a reclamá-las para o fim de Fevereiro. E sabe-se para quê. Exactamente para que 30 de Janeiro resultasse de uma espécie de bissectriz que permitisse que a data fosse de fácil consenso.
Tudo perfeito, portanto, para uma decisão presidencial imaculada. Sem pecado!
Há o pecado original, mas esse, como se sabe, é o pecado por que ninguém é responsável. É o pecado com que nascemos todos, mas a que ninguém liga nenhuma. Os crentes, baptizam-se, e limpam-no. Os não crentes, nem sabem que ele existe.
Não percebi se o main stream é o padre do baptismo, ou se não é crente. Dá no mesmo - para o main stream não há pecado original do Presidente.
Mas há. E há até dois: um primeiro, quando em Outubro de 2019 - ele que sempre priorizou a estabilidade governativa - deu posse a um governo minoritário, que anunciava desde logo que não estabelecia acordos que garantissem o indispensável suporte parlamentar. O segundo é recente: quando o Presidente, porque, e apenas porque queria atirar a provável crise política gerada pelo Orçamento para o próximo ano, apostou tudo na ameaça com a "bomba atómica".
O segundo só existiu por, antes, ter existido o primeiro. Mas é mais um, e porventura pecado tão capital como o primeiro. E um erro político ainda mais indesculpável. Onde é que o Presidente tinha a cabeça quando achava que ameaçar o governo, e os partidos que poderiam viabilizar o orçamento, com eleições antecipadas, nestas condições políticas, poderia resultar noutra coisa que não na que deu?
Os factos são estes: (i) o Presidente ameaçou dissolver o Parlamento se o Orçamento não fosse aprovado; (ii) o Orçamento não foi aprovado.
Não é possivel demonstrar o contra-factual - nunca saberemos se, sem essa ameaça, o orçamento seria aprovado; mas também não é possível desmentir a relação causa/efeito! E a decisão hoje anunciada pelo Presidente só será imaculada por ignorância do pecado original. Ou por crença!