Côrte, burgueses e milagres
Este jogo de hoje no Algarve, na quarta jornada do torneio de apuramento para o mundial do Qatar, no próximo ano, com a fraquinha selecção irlandesa, disse muito do que é a actual selecção nacional de futebol. A equipa das quinas salvou-se de um desaire comprometedor quase por milagre, numa reviravolta já inesperada, com os dois golos de Cristiano Ronaldo que ditaram a vitória a chegarem quando já ninguém os esperava.
Na realidade os irlandeses só não mereceram ganhar porque quem faz o anti-jogo que eles fizeram na segunda parte, não pode nunca merecer ganhar um jogo. Mas quem joga como a equipa nacional o fez, também não!
Na primeira parte a selecção nacional foi uma corte que, em vez de nobres, era constituída por burgueses. A corte de Cristiano Ronaldo, que a equipa voltou a ser, foi ocupada por jogadores aburguesados, de uma nobreza falida. Parece que só havia um objectivo, o tal que tomou conta da equipa de Fernando Santos de há uns tempos a esta parte - levar Cristiano Ronaldo a bater o já igualado recorde de melhor marcador de selecções!
A coisa até começou bem, nesse aspecto. Logo aos 8 minutos o árbitro assinalou, e confirmou, depois de convidado pelo VAR, um penalti, oportunidade que "o melhor do mundo" recebeu com visível ansiedade. E perturbação, fosse pela demora na sua confirmação, fosse pelas provocações a que foi sujeito e a que reagiu mal. Permitiu a defesa ao miúdo de 19 anos que estava na baliza da Irlanda - e que acabaria a fazer uma enorme exibição - e nunca mais em toda a primeira parte se libertou dessa perturbação. Foi sempre um jogador a menos na equipa, que apenas pôde contar com Diogo Jota. E Palhinha, mais ninguém!
Tudo o resto eram burgueses à espera que alguma coisa lhes caísse do céu. E ao minuto 45, em cima do intervalo, num canto, os irlandeses marcaram. Sem surpresa, de resto. A produção da equipa nacional tinha-se ficado por um remate de Diogo Jota, ao poste. No período de compensação, Jota ainda rematou para o único deslise do jovem guarda-redes Gavin Bazuru, que emendou de imediato e evitou o frango.
Para a segunda parte a equipa entrou com André Silva no lugar de Rafa, e isso fez bem … a Ronaldo. Ocupou um espaço na superpovoada área irlandesa, e isso libertou mais o capitão da selecção nacional, mais libertado também da frustração do penalti falhado, e porventura mais convencido que era mais importante ganhar este jogo que marcar, ele, o tal golo.
Paralelamente, os burgueses começaram a perceber que do céu não cairia nada, e a fazer alguma coisa pela vida. Ainda assim muito menos do que faziam os da Irlanda, todos dentro da sua área. Ou no chão, sempre que podiam. E como nunca víramos uma equipa britânica fazer.
Jogar bem, é que não. A bola circulava mais pelos jogadores portugueses, é certo. Com João Mário (na vez de Bruno Fernandes) e Moutinho (na do esgotado Palhinha) passou a circular melhor. Mas sempre para o lado e para trás, como gosta Fernando Santos. E cruzamentos e mais cruzamentos, invariavelmente anulados pelos dez ou onze irlandeses dentro da área, sempre de frente para a bola. Apenas por duas vezes a bola foi cruzada da linha de fundo. Na segunda, aos 90 minutos, levada pelo Gonçalo Guedes (que substituíra João Cancelo) deu no golo do empate.
Um golo naturalmente muito festejado. Por tudo, também por ser o do empate. Depois dos festejos a bola foi ao centro, mas foram os irlandeses a reagir. Só não marcaram de imediato … por milagre. E ensaiaram até passar a defender muito alto, mesmo em cima da área de Rui Patrício. Tudo ao contrário do que teria de acontecer. Mas havia outro milagre para acontecer, ao sexto dos 5 minutos de compensação, na última jogada da partida, quando Ronaldo voltou a cabecear - como só ele consegue - aquela bola centrada por João Mário.
Claro que foi Cristiano Ronaldo que resolveu este jogo. Esse é um facto. Mais ninguém poderia marcar aqueles dois golos. Poderá dizer-se que resolveu os problemas que criou, e que, sem ele, talvez fossem criadas outras oportunidades, e marcados outros golos. Mas isso já não é factual.
Facto é também que cada vez ganha mais forma a ideia que a selecção nacional tem no seu seleccionador o principal problema. E com ele, fazendo dois em um, o de Cristiano Ronaldo. Por muito injusto que isso seja, e por muito difícil que seja hoje de dizer!