Mistérios de vida*
Numa semana em que a morte levou traiçoeiramente o João Vasconcelos, aos 43 anos, um dos melhores de nós, atirando-nos brutalmente contra a realidade da vida a que não podemos deixar de chamar injusta, num não menos insondável mistério, a mesma morte deixa-nos um milagre de vida.
A mesma morte que levou o João tão cedo levara, mais cedo ainda, Catarina, uma jovem canoísta com apenas 26 anos. Estava grávida de 12 semanas do seu primeiro filho quando, na sequência de uma crise de asma, no Natal passado, lhe foi declarada a morte cerebral, já Hospital S. João, no Porto. Entendeu a equipa médica que havia condições para prolongar a gestação, mantendo o corpo da jovem em suporte artificial de vida até à melhor oportunidade para o nascimento do filho, decisão que teve o acordo da família materna e do pai.
Já há três anos, em Lisboa, tinha ocorrido um bem-sucedido caso de gestação em morte cerebral, depois de 107 dias de desenvolvimento intra-uterino com a mãe em suporte de vida.
O Salvador, assim se chama o filho a que, morta, Catarina conseguiu dar vida, nasceu às primeiras horas de ontem, um dia antes do previsto, por complicações na assistência respiratória. Desligada a máquina, a mãe vai hoje a enterrar, 91 dias depois de, a 26 de Dezembro do ano passado, ter sido chorada pela primeira vez a sua morte.
Também de morte se faz vida. Bastava isto para fazer da vida o mais extraordinário dos mistérios. Mas também a mais interminável das discussões…
* A minha crónica de hoje na Cister FM