O apregoado Estado de Direito
Não sei se ainda alguém se lembra que a lei que despenaliza a morte medicamente assistida foi aprovada no Parlamento, promulgada pelo Presidente da República e publicada em Diário da República há mais de um ano.
Não sei se alguém se lembra que, antes, já a Assembleia da República tinha aprovado por cinco vezes - cinco -, e por larga maioria, versões da lei sobre a mesma despenalização. Duas foram objecto de veto político do Presidente da República, Marcelo. Outras tantas foram paradas pelo Tribunal Constitucional. Umas e outras exigiram ao poder legislativo sucessivas revisões e clarificações até chegar à versão final, aprovada pelo Parlamento há ano e meio, com todas as revisões, todas as clarificações, e todos os acertos que possibilitassem, por fim, a promulgação pelo Presidente da República.
Resultou de um dos mais participados debates na sociedade portuguesa, e provavelmente do mais criterioso processo legislativo da democracia portuguesa. Ainda assim, a chamada lei da eutanásia, continua a não existir. Tudo se mantém como se não tivesse sido amplamente discutida, maioritariamente consensualizada, e criteriosamente posta em Lei. Como se não existisse, nem nada tivesse acontecido.
Porque lhe falta a regulamentação, aquele apêndice legislativo que dá sempre muito jeito para atrasar a entrada em vigor da Lei. O que dá muito jeito a quem não a quer aplicar.
Não se compreende que, ao anterior governo, nove meses não tenha sido tempo suficiente para regulamentar e fazer entrar a lei em vigor. Como não foi certamente por falta de tempo, só pode ter sido por um dos muitos anacronismos que o apoquentaram. Já que o actual continue a protelar essa regulamentação é fácil de compreender: o CDS está lá, e nem quer ouvir falar do assunto. E sabe-se como o CDS não precisa de vencer nada para obter vencimentos de causa...
Em causa está, evidentemente, o Estado de Direito. Como hoje bem recorda um manifesto assinado por 250 personalidades de várias latitudes profissionais, sociais e políticas.
O assunto entrou na "ordem do dia", e o governo teve de dizer alguma coisa. E disse!
Que não irá regulamentar o diploma sem que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre os pedidos de fiscalização sucessiva (um entregue há quase um ano por um grupo de deputados do PSD, e outro pela Provedora de Justiça). Mais valia ter dito que se tinha esquecido, e que um dia destes iria pensar no assunto.
É que assim apenas está a dizer que o Estado de Direito Democrático é para apregoar, mas não para funcionar. E que, ilegítima e ilegalmente, vai protelar a aplicação da Lei - se não mesmo "rasgá-la" - até quando quiser.
Ilegitimamente porque contraria a vontade expressa da maioria, e confirmada por mais quatro vezes.
Ilegalmente porque os pedidos de fiscalização sucessiva ao Tribunal Constitucional não têm efeitos suspensivos da lei.
Até quando quiser porque não há prazos fixados para os juízes se pronunciarem sobre os pedidos de fiscalização sucessiva. E pode sempre forjar, na esfera dos interesses que integra, os pedidos de fiscalização sucessiva que forem necessários.
É lastimável, mas é assim que somos governados em democracia. Como seria, se não fosse?