Sem escrúpulos
Um menino morreu, depois de mais de quatro dias de resistência ao sofrimento no fundo de um poço, no norte de Marrocos, onde caíra na passada terça-feira. No sábado, ao final do dia, depois de dias e noites de escavações para o resgatar do fundo, quando finalmente foi possível chegar-lhe, era já tarde para lhe salvar a vida.
A essa mesma hora milhares de outros meninos morreram pelo mundo fora sem ser notícia. Durante aqueles quatro dias, milhões de meninos sofreram de frio, fome, doença e guerra sem que o mundo se quisesse aperceber disso. Muitos morreram, e muitos virão a morrer nos próximos dias. com a Humanidade na mesma indiferença.
O drama do pequeno Rayan e dos seus pais não passou despercebido, e tocou fundo em milhões de pessoas neste mundo desumanizado. Mas não ajudou a humanizá-lo, pelo contrário. Pelo menos por cá, entre nós. Não sei se foi assim por todo o lado, mas não me custa nada a admitir que sim, porque hoje tudo corre igual por todo o lado. Com os mesmos objectivos e as mesmas fórmulas!
As televisões sabem como instrumentalizar as emoções mais primárias e irracionais para conquistar audiências, e fazer negócio. A heróica resistência do pequeno Rayan, o drama dos pais, a épica tentativa de salvamento e a incerteza do desfecho eram garantias de produto de sucesso. Bastava-lhes repetir a fórmula, a receita infalível mais que testada: horas e horas de directos, sem acrescentar coisa nenhuma, e o desfile em estúdio de dezenas de "especialistas", a não dizerem mais que banalidades. Mas a encher o chouriço!
Mas resulta. Resulta sempre!
Tanto que a Sandra Felgueiras, elevada a figura de proa do jornalismo populista, agora encaixada no sítio certo, depois de mártir na televisão pública, correu para o FB a cantar vitória: " Uma emissão talentosa em torno da top story do dia ... pela primeira vez na sua história a CMTV registou mais audiência que a RTP 1..."
Sem escrúpulos. Não é apenas a Sandra Felgueiras que os não tem. Nem a CMTV que os não teve; a CNNP também não lhe ficou atrás!