Sem pingo de vergonha*
Bem cedo se percebeu que a tragédia iria ser objecto de aproveitamento político. Que o diabo anunciado para o Verão passado estaria para chegar, com um ano de atraso, e agora no seu habitat natural, nas chamas do inferno em que o país se tornou.
Tudo começou, se bem se lembram, com a notícia da queda do avião que não caiu, ainda em pleno combate ao incêndio do Pedrogão Grande. Logo a seguir surgiu a notícia dos suicídios, dada pelo próprio profecta do diabo, a que se sucedeu a inacreditável série de artigos publicados no El Mundo, assinados por um jornalista virtual, o tal Sebastião Pereira, que continua a monte. Sem que ninguém se preocupe muito em encontra-lo.
Num país onde coubesse um só bocadinho de vergonha, esta sucessão de episódios, inspirados nas fake news, que Trump passou a exportar para todo o mundo, teria ficado por aqui.
Não ficou. Neste país já não há lugar para um pingo de vergonha. Não admira que, por isso, tenha sido um jornal dito de referência, o maior e mais influente semanário do país, a não ter vergonha de usar a primeira página para lançar o boato sobre o número de mortes anunciadas. Vergonha ainda mais indesculpável quando, depois, o corpo do texto não tem nada a ver com o título puxado para manchete.
Muita gente se indignou com a chegada de Trump à presidência da América. Mas nem todos perceberam o que isso poderia vir a significar. Muitos percebemos que Trump era um grande mal para a América, poucos perceberam que seria um mal muito maior para outras partes do mundo. É que, por lá, continua a haver jornalistas capazes de o desmascarar, e de denunciar as suas fake news. Por cá, não!
Não houve – não há – jornalista que escrutine e valide a notícia antes de a dar, como mandam a ética e a deontologia. Uma lista de uma senhora, ao que se diz empresária, e ao que se conhece de currículo pouco respeitável, foi quanto baste para suportar um boato macabro. Ninguém se preocupou em compará-la com o que quer que fosse. Ninguém se interessou sequer em ver que lá havia nomes repetidos…
Não. Era preciso lançar a bola de neve. Um número interminável de abutres, maior que o da lista que apregoavam, estava à espera. E este jornalismo não gosta de os fazer esperar!
* Da minha crónica de hoje na Cister FM