Com a polémica aberta pela divulgação pública do acórdão do Supremo Tribunal americano, que defende a alteração à despenalização do aborto, em vigor desde 1973, o tema voltou à agenda política. Na América, mas também por cá.
Por cá, e também à boleia da recente polémica à volta da cooptação do juiz António Almeida Costa para o Tribunal Constitucional, que entende que essa despenalização é inconstitucional, aproveitou-se para tentar relançar o tema, mesmo que o Presidente da República, que como se sabe também navega (seria talvez mais apropriado dizer que também nada) nessas águas, tivesse de imediato acalmado os ânimos, declarando que esse, hoje, é um não assunto.
Sempre que o "não assunto" vem à tona surge na dicotomia entre pró e contra o aborto. É simples, na opinião publicada: quem defende a despenalização, é a favor do aborto; que se lhe opõe, é contra. Assim foi sempre, e assim continua a ser. E não é assim por facilitação de linguagem, é assim porque se quer fazer crer que é mesmo assim.
Terei em tese de admitir que haja quem seja a favor do aborto. Pessoalmente, não conheço ninguém. Sou e sempre fui a favor da despenalização, e sou, e sempre fui, contra o aborto. E assim é toda a gente que conheço que é a favor da despenalização do aborto. E não consigo entender como possa haver quem defenda o aborto. Como não consigo perceber como, em profunda e esclarecida convicção, alguém possa actualmente entender que quem ser contra o aborto é ser contra a sua despenalização.
Mais que uma questão de princípio(s), é uma questão de números.
O "Expresso" revela hoje que o número de interrupções voluntárias da gravidez em 2021 caiu 15,5% em relação ao ano anterior, em que já tinha caído 6,3% face a 2019. Os números são, respectivamente, 11.640, 13.777 e 14.696. Entre 2011 e 2017, caíram em 25%, revelava o Diário de Notícias em Março de 2019.
Se a despenalização do aborto contribuiu desta forma para o reduzir, parece legítimo concluir que ser verdadeiramente contra o aborto não é ser contra a sua despenalização, ao contrário do que se faz passar. E muito menos, como mais flagrantemente se comprova, ser contra a despenalização do aborto nos termos consagrados na lei nacional, é ser pró-vida, como planfetariamente é apregoado. Não é só pelo número de interrupções de gravidez que foi reduzido. É, bem mais importante ainda, pelo o número de vidas de mães que foi poupado, ao substituir actos absolutamente clandestinos, em deploráveis e perigosas condições sanitárias, por actos medicamente assistidos, e devidamente acompanhados nas suas diversas envolventes.
Por mais de uma vez dei aqui nota da minha surpresa pela falta de debate em torno da co-adopção, chegando a adiantar algumas hipóteses – umas simpáticas, outras nem tanto - para isso.
Começa agora a perceber-se que a discussão que faltou antes não falta agora, depois de aprovada a lei. É mesmo o tema de hoje do Pós e Contras, o programa da RTP que, sem que perceba bem por quê, foi transformada no grande fórum de debate das grandes questões nacionais…
E já se percebeu por que é que o debate está agora lançado. É que, tal como há quinze anos atrás, no primeiro referendo à legalização do aborto, as contas saíram furadas. Na altura foi um dia de sol de finais de Junho que tornou a praia bem mais apelativa. Dando como certa a vitória do SIM, as pessoas preferiram a praia à Assembleia de Voto, mesmo não sendo incompatíveis. Agora, foi a liberdade de voto dada aos deputados do PSD que trocou as voltas aos que davam como certo o chumbo da proposta de lei do PS. A surpresa não foi muito diferente!
Os surpreendidos de então tiveram de esperar quase dez anos. A oportunidade para legalização do aborto chegaria só em 2007. Os surpreendidos agora não estão dispostos a esperar. Querem resolver isto já, mesmo que seja em Belém. E lançam agora o debate que não fizeram por serem favas contadas!
Não fosse dramática a situação que atravessamos e esta campanha eleitoral seria motivo de hilariante gargalhada colectiva capaz de se ouvir no outro lado do mundo.
Ninguém fala dos juros que não vamos ser capazes de pagar, da recessão de dois anos que temos pela frente ou da catástrofe da Grécia, a mostrar-nos -a cores e ao vivo – o futuro que temos como certo já ao virar da esquina. Ninguém nos diz nada sobre o caminho que esta União Europeia está a tomar, agora pendurada das garras da Alemanha de Merkl. Ninguém se preocupa com o que tem vindo a lume sobre as SCUTS e as suas PPP. Sobre a estratégia para vencer a batalha da produtividade que nos garanta capacidade competitiva para poder crescer, nada! Ninguém se preocupa com isso… Brincam com a já famosa taxa social única (TSU), que a troika impôs sem que, pelos vistos, o governo tenha dado conta. Que o PS diz que é coisa para pensar lá mais para a frente, que agora o que importa é saber onde é que o PSD vai buscar o financiamento para a redução que propõe: se à cerveja, se ao vinho ou se a tudo o que mexa. Que o PSD quer baixar em quatro pontos, mas sem dizer como nem quando. Porque não sabe ou porque não quer que ninguém saiba! Sobre o que o CDS não sabe nada nem quer saber, porque a chuva, mesmo de pingo grosso como a destas trovoadas que por aqui andam, nem sempre molha: às vezes consegue passar-se entre os pingos mais grossos!
Não! Importante mesmo é falar da despenalização do aborto… Este é que é o grande problema do país, já todos o tínhamos percebido!
E pronto, lá foi introduzido mais ruído nesta campanha…
Que toda esta cambada que por aí anda em desfile pelo país entre em delírio e aproveite estes dislates para subir o patamar da barulheira, para que o ruído abafe tudo e não deixe ouvir nem discutir nada do que importa, a gente ainda percebe. O que a gente não percebe é que haja um jornalista – mesmo que da Rádio Renascença - que ache importante esclarecer agora, nesta altura, a questão do aborto. Mas o que a gente não entende de todo é que Pedro Passos Coelho não consiga perceber que só tinha uma resposta a dar. Esta e mais nenhuma: “ A questão da IVG não está neste momento na ordem do dia, passe à pergunta seguinte…”
Já basta de se pôr a jeito! Um dia destes deixamo-lo cair do colo…
Acabo de tomar conhecimento desta: as mulheres que tenham interrompido voluntariamente a gravidez, nos termos da lei da respectiva despenalização, têm direito a subsídio de maternidade.
É verdade, este aborto existe! Está plasmado na lei! Alguém escreveu uma barbaridade destas, alguém aprovou uma imbecilidade destas, e alguém promulgou esta aberração!
Impunemente! E sem sombra de pudor...
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