A abstenção caiu, nas legislativas de anteontem, pela primeira vez desde que há eleições democráticas em Portugal. Tinha vindo sempre a subir desde as primeiras eleições, em 1975, tendo atingido o seu máximo (51.4%) em 2019, depois dos dos 44% de 2015. Foi ainda a terceira maior de sempre, mas caiu para 42% - perto dos 10 pontos percentuais.
Levantam-se sempre muitas dúvidas sobre os números da abstenção, que se admitem sempre inflacionados pela hoje absolutamente incompreensível desactualização dos cadernos eleitorais. Mas, como em comparação estão números obtidos nas mesmas condições dos cadernos eleitorais, a objectividade desta queda na abstenção não é passível de contestação. Acresce ainda que esta queda acontece em contexto de pandemia - e num dos seus picos - e com mais 250 mil novos eleitores inscritos, o que valoriza ainda mais este resultado.
Alguns dirão que esta inversão se deve ao alargamento da oferta partidária. Que mais opções de escolha leva mais gente a votar. No entanto as opções que agora foram a votos já tinham estado disponíveis nas últimas legislativas, há pouco mais de dois anos. E é pouco provável que um súbito ímpeto cívico tenha chegado à sociedade portuguesa e motivado os portugueses para uma maior participação eleitoral.
A que se deverá então esta saudável inversão do abstencionismo?
Não tenho resposta. Mas coloco uma hipótese: o negócio das televisões!
As televisões descobriram que o espectáculo político também poderia gerar audiências, e socorreram-se da experiência do futebol. Se o futebol rendia, porque não replicar-lhe a fórmula de sucesso?
Os debates televisivos, outrora maçadores e desmobilizadores, foram o balão de ensaio. Introduziram-lhe o "pré-match", as "flash interview" e, depois, os infindáveis debates de comentário servidos pelas "cartilhas" dos "clubes", cada uma defendendo a sua turba. As sondagens, e especialmente essa coisa do "tracking poll" acrescentaram o sal e a pimenta à receita. E resultou em sucesso, exactamente como no futebol.
Talvez tenha sido isso - a futebolização da política - a contribuir para a descida da abstenção. Não é o mais nobre, nem talvez o melhor caminho ...
Chega hoje ao fim a campanha eleitoral. Amanhã é feriado, e dia de reflexão para os eleitores, todos nós. Não se percebe bem para que serve, nem que falta faz… mas está assim instituído.
E no domingo vamos votar. Alguns. Sabemos que muitos não vão. Uns por comodismo, outros por desinteresse e outros ainda porque desistiram… Uns porque não querem saber, tanto se lhes dá, outros porque acham que não vale a pena, que não muda nada. Uns que não se deixam encantar, e outros que se desencantaram…
Daí que estes sejam dias de apelo à participação eleitoral dos portugueses.
Votar – é um cliché, mas é assim - é um direito e um dever. Um direito que a nenhum cidadão pode ser negado, e um dever que nenhum cidadão deve negligenciar. Apenas isso. Sou contra o voto obrigatório. Por princípio, mas acima de tudo pela sua (im)praticabilidade.
O incumprimento legal tem, por definição, que ser sancionado. A lei tem que definir a sanção pelo seu incumprimento. A partir daqui imagine-se o que por aí viria … Deixo apenas à imaginação de cada um …
Não há por isso volta a dar, e os que não sentem a responsabilidade do voto não se vão aproximar das urnas. Por mais apelos, mais ou menos bacocos, que lhes dirijam, não vão!
Claro que é sempre conveniente lembrar a todos os que decidiram não votar, e aos que nem isso decidiram, porque mesmo essa decisão já seria uma maçada, que milhares de compatriotas lutaram décadas a fio por eleições livres. Que muitos deles morreram sem nunca poder chegar a votar. Que a democracia também é sua responsabilidade. E que não votar não significa estar contra nada, significa apenas não fazer nada contra tudo.
Mas, simplesmente votar, não resolve grande coisa. Não é por se deslocar à Assembleia de Voto e deixar uma cruz num quadrado qualquer, que alguém resolve o que quer que seja. Isso apenas baixaria a abstenção e deixaria porventura o ego do regime mais composto. Era batota. É preciso que o voto seja uma expressão informada e consciente de cidadania.
Por isso, se nada fizermos no domínio da educação cívica que acrescente cidadania às pessoas, o apelo ao voto dificilmente deixará de ser mais um gesto demagógico, idêntico a tantos outros de que estamos em grande parte fartos.
Passamos os olhos pelas capas dos jornais e vemos:
"Barão de Rio suspeito de gerir rede de favores", referindo-se a Álvaro Amaro, e a propósito da operação "Rota Final", ontem levada a cabo pela Polícia Judiciária em 18 Câmaras Municipais do norte e centro norte do país;
"Duarte Lima perde processo para filha de milionário", sobre um dos mais arrepiantes casos de polícia de um dos mais influentes políticos do regime em tempos ainda recentes;
"Três ex-autarcas do PSD suspeitos de corrupção", ainda sobre a operação "Rota Final";
"Vice do PSD é um dos cinco arguidos do caso Rota Final";
"Rota final atinge PSD - Álvaro Amaro e outros dois ex-autarcas são arguidos";
"Rota Final - Câmaras sob suspeita adjudicaram mais de 15 milhões a empresa de transportes em cinco anos";
"Já há cinco arguidos, entre os quais Álvaro Amaro, que deixou a Câmara da Guarda para ir para o Parlamento Europeu";
"Relação de Lisboa anula absolvição de Duarte Lima no caso de Rosalina Machado".
E depois vemos: "E se lhe pagassem para votar?", uma interrogação lançada a partir de uma ideia do presidente do governo regional dos Açores, para combater a abstenção.
A ideia não é absurda. É certamente criticável. Mas também seguramente defensável, e tem pano para mangas. O problema é que, dado o contexto, o mais provável é uma reacção do tipo: Votar? Votar com gente desta? Nem que me paguem!
Chegamos a um ponto, 45 anos depois de termos conquistado o direito de votar em eleições democráticas e livres, por que muitos lutaram com sacrifício da própria vida, em que apenas muito pouco mais de 30% de nós - cidadãos portugueses com mais de 18 anos inscritos nos cadernos eleitorais - usa esse direito para cumprir o seu dever de voto.
E isso, por mais voltas que se dêem, é o que mais ressalta - e que mais preocupa - destas eleições europeias. Tudo o resto é verdadeiramente marginal. Até porque, como na campanha, também na noite eleitoral tudo continua na mesma - ninguém perdeu. O PSD não perdeu. O CDS, quase apanhado pelo PAN, não perdeu. Nem o novo Aliança perdeu... Mesmo que o PCP tenha final e surpreendentemente perdido.
E porque os que ganharam, ganharam pouco com isso. O PAN, ganhando muito em expressão eleitoral, com 5% dos votos ganhou apenas um deputado. O Bloco de Esquerda, com 10% dos votos, passou a terceira força política e duplicou a sua representação, mas ganhou apenas mais um deputado. Ao invés, ganhando por pouco, apenas poucochinho mais que o poucochinho de há 5 anos, o PS ganhou muito. Porque foi quem mais deputados acrescentou à sua representação mas, acima de tudo, o governo saiu reforçado pela derrota em toda a linha da oposição. E renovou as energias para as legislativas que aí vêm.
Talvez por isso o Pedro Marques tenha chamado uma vitória estrondosa a uma vitória por poucos.
Depois da Comissão Nacional de Eleições – a CNE – ter emitido uma recomendação desaconselhando a realização de jogos de futebol no dia das eleições autárquicas, corre por aí que o governo se prepara mesmo para proibir, por lei, os jogos de futebol em dia de eleições.
Como, pela tecnicidade da lei, ela tem que ser geral e abstrata, irá certamente encontrar uma abrangência que vá para além do futebol e que nem deixe escapar os sempre bem regados jogos entre solteiros e casados, que acontecem pelo país fora. Nem sei se museus, cinemas e teatros escapam…
O governo poderá até vir a recuar nesta intenção - acredito até que venha -, mas confesso que ela não me surpreende. Está-lhes na massa do sangue. A primeira coisa que vem à cabeça desta gente é legislar: faça-se uma lei. A segunda é proibir: proíba-se! É assim que, de há muito, as coisas se resolvem em Portugal.
Vemos que em boa parte dos países, na Europa, mas não só, se vota durante a semana, num normalíssimo e corrente dia de trabalho. Começamos a ver surgir o voto electrónico, que agiliza todo o processo, e facilita a vida a toda a gente. Mas nada disso se aplica a nós, aqui neste cantinho da Europa, que o Senhor Juncker já não enxerga.
Por cá tem de se votar ao domingo, e na agenda de cada um nada mais pode constar que a deslocação à assembleia de voto, de manhã, o regresso a casa para almoço com a família, e o aconchego do sofá para fazer contas à vida enquanto as urnas não fecham.
Enquanto se pensar assim, não se pensa que os cidadãos não vão votar porque a sociedade não está virada para promover a consciência cívica e os valores da cidadania. Porque a pobreza de ideias, o mau gosto, os dislates e os disparates das campanhas eleitorais conseguem destruir qualquer réstia de consciência cívica que possa ter resistido. Ou porque, cansados de falsas promessas, de abusos, de comportamentos à margem da ética, muitas vezes irresponsáveis, ou mesmo delituosos, muitos desistiram da democracia.
Ah… Já agora recomendaria que se pedisse ao resto da Europa para também não jogar à bola, nesse dia. É que a malta não vai à bola, mas também não sai de frente da televisão para ir votar.
Vamos voltar a ser chamados a votos dentro de um mês. Das últimas vezes que o fizemos não nos sobraram grandes motivos de satisfação: receio que, desta vez, nos sobrem ainda menos! A abstenção tem sido grande, num claro atestado do divórcio entre a maior parte de nós e a política. Na clara demonstração do desencanto dos portugueses com a sua democracia e, pior - neste dramático momento da nossa História - num triste sinal de desinteresse dos portugueses pela resolução dos seus gravíssimos problemas. Numa imagem de um país derrotado e descrente que dificilmente poderá estar em condições de honrar a sua História!
Temo que no próximo dia 5 de Junho a abstenção repita valores que só nos podem envergonhar. Tudo, infelizmente, aponta nesse sentido, num ciclo vicioso a que urge pôr fim: uma classe política sem prestígio nem honra, presa nas malhas de um compadrio intolerável, enredada nas teias da mentira e da corrupção e atada nas cordas da demagogia e da retórica da baixa política, feita de insulto e de irresponsabilidade, mina o débil espírito de participação cívica dos portugueses e afasta-os dos regimes mínimos de intervenção que transportam e impõem padrões mínimos de exigência à classe política e que promovam a sua renovação.
Acrescem ainda as circunstâncias próprias destas eleições que muitos desejaram e, agora, não menos temem. Todos as desejaram, em particular Sócrates e o PS, como já toda a gente percebeu. E todos as temem, em particular o Presidente da República, que já percebeu que foi um erro – e desta vez reconheceu-o, precisamente com o apelo à unidade, à união nacional que Passos Coelho denunciou e que logo toda a gente armadilhou -, quando dispunha de legitimidade fresquinha para lançar mão de um amplo quadro de intervenção, partir para eleições que poderão nada clarificar. É até bem provável que delas resulte um quadro político mais complicado!
Os últimos 15 anos do século passado pareciam ter-nos indicado o caminho da desejada estabilidade política, com um ciclo de três legislaturas consecutivas completas: as duas maiorias absolutas de Cavaco Silva e o primeiro governo Guterres que, sem maioria, conseguiria levar a bom porto uma legislatura de vacas gordas. Foi sol de pouca dura: reconfirmado Guterres, à beira da maioria com um inédito empate parlamentar, logo se seguiria o pântano que o levaria a abandonar o país. Seguir-se-ia Durão Barroso que, também sem maioria nas eleições, recorreria ao CDS de Portas para a assegurar no parlamento. Seria então Durão Barroso a abandonar o país, pelas razões conhecidas, deixando a Santana Lopes um poder que não conquistara. Falta de legitimidade, e não só – como se sabe -, levariam a nova interrupção da legislatura, que viria a abrir as portas a nova maioria absoluta. De Sócrates, que não soube o que fazer com ela e que, mesmo perdendo-a em 2009, nos trouxe até aqui: ao mais dramático momento da nossa História depois do Ultimato Britânico. E a umas eleições surrealistas que, quanto muito, decidirão quem chefiará o governo que executa o programa da Troika para os próximos 4 anos.
Não o programa que PS tirou da gaveta e mostra agora, a querer convencer-nos que aquilo é a sério – como se fosse possível, nesta altura, ver ali alguma coisa séria! Nem o que o PSD não teve tempo para preparar ao longo de todo este último ano e que o PS agora lhe reclama. É apenas o programa que a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI prepararam para nós, estão à beira de nos apresentar, e pelo qual, sensata e realisticamente, o PSD agora aguarda.
Parece-me que a decisão por eleições não foi a melhor. Mas, em democracia, dar a palavra ao povo nunca poderá ser uma má solução. Por isso vamos todos votar: é este o apelo que, ainda à distância de um mês – porque poderei não ter outra oportunidade –, aqui quero deixar!
* Publicado hoje no Jornal de Leiria
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