O Presidente Marcelo tinha dito que responderia hoje a todas as questões que têm marcado estes últimos dias. Reportava-se à entrevista que tinha agendada para esta noite à RTP e ao "Público".
Dado que na entrevista Marcelo foi igual a Marcelo, isto é, sem tirar nem pôr, um comentador político, e dado que, no âmbito da política geral, não disse nada que tenha vindo a dizer, nem que acrescentasse o que quer que seja ao que é conhecido, com bicadas ao governo, talvez agora um bocado mais severas, e com a inevitável menção específica a Fernando Medina, há muito na sua mira, como é sabido, não há novidades. Nem grandes nem pequenas.
Percebeu-se que não dá crédito a Luís Montenegro. Mais ainda por nem o seu nome ter referido. E passou como cão por vinha vindimada sobre o "laboratório" dos Açores, onde os tubos de ensaio estão a rebentar com tanto estrondo que mais parece mais um sismo na região.
Sobre a posição do Conferência Episcopal, já lá vai quase uma semana, sobre os abusos sexuais, manifestou-se preocupado, não deixou dúvidas na condenação: Foi uma “desilusão”; a Igreja ficou “aquém das suas responsabilidades”; é "incompreensível”. Mas continua a não deixar de ser estranho, tratando-se de Marcelo, que tenha precisado de uma entrevista formal, uma semana depois, para se referir a um assunto que, evidentemente, o preocupou.
Já quanto ao relatório da IGF, que levou à decapitação da administração da TAP, foi diferente. Disse que o Governo resolveu “à portuguesa”. Mas ele também: varreu para debaixo do tapete exactamente tudo do que pior "à portuguesa" aconteceu naquele processo.
O Bispo de Beja foi um dos que não colaborou, nem só um bocadinho, com a Comissão de Inquérito Independente. Disse, depois de apontado, que estava em convalescença.
Agora, em entrevista à SIC, sugere perdão aos padres abusadores. "Todos somos pecadores, todos somos limitados, todos temos falhas". "Na Igreja Católica existe o perdão".
Com algum excesso de boa vontade poderemos perceber que a sua convalescença lhe tenha dificultado disponibilização do acesso aos ficheiros da Diocese à Comissão de Inquérito. Não conseguimos, mesmo, é perceber o que é que, pecado, tem a ver com crime.
Pode ser que o Presidente Marcelo, lá para o final da semana, como anunciou, nos consiga explicar esta coisa de "cada cavadela, cada minhoca".. Ele tem jeito para estas coisas.
Na passada sexta-feira, ao final do dia, na conferência de imprensa da Conferência Episcopal Portuguesa, realizada em Fátima, ficamos a saber que os bispos portugueses - que tinham encoberto os abusos sexuais cometidos pelos seus padres ao longo das últimas décadas, e que, alguns deles, tinham recusado colaborar com a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças - continuam empenhados em desvalorizar os crimes hediondos praticados, e apostados em continuar a proteger os abusadores infames.
Quando a expectativa era que se penitenciassem, que apresentassem desculpas às vítimas e formas de reparação pelo sofrimento causado, e que assumissem um compromisso solene de tudo fazerem para que nunca mais esses vis comportamentos se repetissem, a mais alta estrutura da Igreja Portuguesa diz apenas que nada faz, e nada tem a fazer.
Dois dias depois, ontem, o próprio número 1 da hierarquia, o Cardeal Patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, vai ainda mais longe no despudor, dando os factos validados pela Comissão Independente por não provados. E desvalorizando-os na forma mais ignóbil, nestas palavras:
Ontem à noite, num programa da televisão, o conservador e católico António Lobo Xavier desafiava os fiéis a manifestarem-se em protesto junto a cada um dos Paços Episcopais. É o mínimo de decência exigível nesta altura à comunidade católica!
Conhecíamos monstruosidades do clero ao longo da História. Já sabíamos da monstruosidade dos abusos sexuais sobre crianças dos tempos históricos mais próximos. Da monstruosidade dos actos, e da não menor monstruosidade do seu encobrimento.
Sabê-lo, e conhecê-lo, através do estudo - de excelente qualidade e rigor científico - que a Comissão Independente liderada por Pedro Strecht hoje apresentou publicamente, que aqui se disponibiliza, só aumenta a repugnância. Pela monstruosidade, e pela sua monstruosa ocultação durante tantas décadas.
Repugna saber que 77% dos abusadores eram padres, metade dos quais com relações próximas da criança. Repugna saber que "os principais locais de ocorrência dos abusos foram seminários, igrejas internas, confessionários, casas paroquiais e escolas católicas". Repugna saber o que é transcrito em discurso directo das vítimas. Diz uma que, depois do acto, o padre lhe disse: "Estiveste bem. Deus gostou!"
Não repugna menos, pelo contrário, que bispos e cardeais, que o topo da hierarquia católica, tenha sido cúmplice. Que tenha dado protecção aos abusadores e negligenciado as crianças. E que tenha resistido, até mais não poder, a aceitar e a colaborar com a investigação.
Que esta resistência - bem nos lembramos como resistiu a disponibilizar o acesso aos seus ficheiros, e como isso atrasou os trabalhos da comissão - tenha acabado por empurrar a apresentação pública dos seus resultados para cima do maior evento católico no país, a que chamam "Jornadas Mundiais da Juventude", e ainda mais em cima dos escândalos com os seus gastos, não fosse a dimensão da tragédia, e seria simplesmente irónico.
Mas percebe-se. Foi por ele ter dito o que disse que não tinha dito que, também indeculpável, António Costa veio em sua defesa, e dizer que não tinha nada que pedir desculpa, que os portugueses é que lhe deviam pedir desculpa.
Há quem ache que o primeiro-ministro quis "dar graxa" ao presidente. Não partilho dessa ideia, António Costa já não é aluno de Marcelo. Disputa-lhe o título de catedrático do jogo político. Na realidade quis manietá-lo. E, não querendo deixar-se manietar, Marcelo reagiu rapidamente a pedir desculpa.
Não é um sincero pedido de desculpas. É apenas a inevitável jogada de contra-ataque de quem se não deixou encostar às cordas pelo adversário.
Afinal, para ambos, é apenas o jogo que conta. E isso é também indesculpável!
Marcelo perdeu definitivamente a impunidade. Podia dizer tudo o que lhe apetecesse, dos maiores disparates à maiores provocações, que ninguém levava a mal. Deixou de ser assim. Não se sabe se ele percebeu que deixou de ser assim, e sabe-se até que ele não deixará de ser assim, um irresponsável incontinente verbal que se acha acima da crítica.
Todos o ouvimos dizer que os 400 casos de abusos de menores na Igreja não era um número elevado. Foi claro e directo, e sem deixar espaço a qualquer interpretação, nem a qualquer equívoco. Tratou, sem margem para qualquer dúvida ou interpretação diferente, de desvalorizar o grau de aberração e a gravidade dos crimes continuados da Igreja Católica, na linha, aliás, de intervenções anteriores - públicas, ou privadas, como os conhecidos telefonemas a avisar figuras da hierarquia da Igreja que estariam a ser investigadas.
Se isso é repugnante, a emenda que tentou fazer sobe o nível do nojo. Vir depois dizer que fora mal interpretado, e que quisera apenas dizer que achava que seriam muitos mais. ainda assim continuando a meter os pés pelas mãos, é apenas cavar mais fundo no descrédito para enterrar definitivamente o último assomo de dignidade exigido a um Presidente da República.
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