Com o PSD meio envergonhado por ter permitido aquilo, e a IL a fazer daquilo apenas e só uma birra, a "sessão solene de comemoração do 25 de Novembro" acabou por transformar a Assembleia da República numa taberna.
Não é a primeira vez que o Parlamento faz de taberna, mas é a primeira vez que faz de taberna solene, decorada com rosas brancas. O taberneiro, esse é sempre o mesmo. Sem solenidade, nem rosas!
Do processo histórico que se sucedeu ao derrube do regime ditatorial velho de 48 anos, iniciado com o golpe de Estado de 25 de Abril 1974, é parte marcante um período de dois anos que poderemos dar por concluído com as primeiras eleições legislativas, em 25 de Abril de 1976.
Nesse curto período - mas riquíssimo como nenhum outro na História de Portugal - qualquer historiador encontrará sete datas marcantes: 25 de Abril de 1974, naturalmente, 28 de Setembro do mesmo ano, 11 de Março, 25 de Abril e 25 de Novembro de 1975, e 2 e 25 de Abril de 1976.
Se retirarmos, não por critérios de importância, mas apenas de organização de ideias, 25 de Abril de 1975, data das primeiras eleições livres em Portugal, com 97% da participação eleitoral, para eleger a Assembleia Constituinte; 2 de Abril de 1976, data de aprovação da Constituição, e 25 de Abril de 1976, data das primeiras eleições legislativas, restam as quatro que mais associamos a momentos do processo histórico do 25 de Abril: o próprio 25 de Abril, o 28 de Setembro, o 11 de Março e o 25 de Novembro.
Em 25 de Abril de 1974 mudou tudo. Caiu todo um regime, e com ele caiu tudo o que o sustentava, mas também tudo o que ele sustentava. Não sobrou nada. Não é por muitos anos depois termos vindo a perceber que tanta coisa afinal tinha ficado, que deixa de ser verdade que, naquele momento, caiu tudo.
Em 28 de Setembro de 1974 - na segunda (a primeira já tinha levado à queda do I governo Provisório, em 11 de Julho) tentativa de Spínola de tomar conta o regime - caiu o Presidente da República e o governo, o II Provisório.
Em 11 de Março de 1975 - mais uma vez Spínola, desta em explícito golpe militar - mudou muita coisa. Acabou a Junta de Salvação Nacional, substituída pelo Conselho da Revolução. Foram decretadas as nacionalizações (banca, seguros e principais empresas industriais), avançou a reforma agrária, e voltou a mudar o governo. Do III para o IV provisório.
Em 25 de Novembro de 1975 não mudou nada. Foi a única destas datas em que nada mudou!
Com o 11 de Março abriu-se o PREC (Processo Revolucionário em Curso). As nacionalizações, a reforma agrária, as ocupações (de terras, mas também de empresas), e a rua - as manifestações populares - eram a expressão da revolução, em contra-mão com os resultados das eleições constituintes.
Desta contradição surgiu o "Verão quente", em que o país se dividiu perigosamente ao meio. Sedes dos partidos alinhados com o PREC, e em especial do PCP, eram incendiadas por todo o Norte e Centro do país. Mário Soares assumiu a liderança política da oposição ao governo de Vasco Gonçalves, exigindo a sua demissão. Retirou o PS do então do IV governo provisório, levando à sua queda e substituição pelo V, ainda e sempre chefiado por Vasco Gonçalves, já sem PS e PPD (na forma, também sem o PCP), em 8 de Agosto. Utilizou também a "rua", e fez daquele comício da Fonte Luminosa, em 19 de Junho de 1975, que encheu toda a Alameda D. Afonso Henriques, a demonstração que tinha o poder dos votos, mas também o da mobilização popular.
Em 7 de Agosto um grupo de militares do Conselho da Revolução - o grupo dos 9, liderado por Melo Antunes, e que integrava Vasco Lourenço, Pezarat Correia, Franco Charais, Canto e Castro, Costa Neves, Sousa e Castro, Vítor Alves e Vítor Crespo - publicou um documento ("documento dos nove", também chamado "documento Melo Antunes") que rapidamente alcançou amplo apoio militar. Defendia um MFA isento relativamente aos partidos, e a criação de um amplo bloco social de apoio de um projecto nacional de transição para o socialismo. Era a resposta ao Documento "Aliança Povo/MFA", apresentado um mês antes, que acelerava "a via revolucionária".
O amplo consenso militar do "documento dos nove" - e a ampla expressão eleitoral do apoio político que se lhe juntou - teve consequências praticamente imediatas. Em 19 de Setembro Vasco Gonçalves foi demitido e foi empossado o VI Governo Provisório, chefiado por Pinheiro de Azevedo. Depois, Otelo Saraiva de Carvalho foi substituído no Comando da Região Militar de Lisboa por Vasco Lourenço. As restantes já eram comandadas por membros do grupo dos nove.
Na realidade o que havia a mudar, já estava mudado. Em 25 de Novembro de 1975 nada mudou. Emergiu Ramalho Eanes, até aí uma personagem desconhecida, e dir-se-á que não foi pouco.
Mas também na altura não foi muito. É ele próprio queem entrevista escrita ao Soldiz que o seu protagonismo se esgota no clássico aforismo: "O homem é o homem e a sua circunstância". Melo Antunes tinha-lhe pedido para preparar uma operação militar para a eventualidade de - algures no processo - ser necessário algum tipo de intervenção. Nunca foi, como ele próprio conta, com tudo a ser sempre resolvido com civilidade entre Costa Gomes, o Presidente da República, Otelo e Melo Antunes.
Sim, o Jaime Neves saiu com os comandos e os seus chaimites da Amadora, e passeou ali pela Ajuda, em frente ao quartel da Polícia Militar, comandado pelo major Tomé. E houve até um morto. Mas nem Eanes consegue explicar o que se passou.
Pode ser que amanhã, na sessão solene que a direita conseguiu impor na Assembleia da República para assinalar pela primeira vez esta data, alguém o consiga explicar alguma coisa.
Pode ser que alguém lembre a esta gente, amanhã solenemente engalanada, que logo a seguir, apenas quatro meses depois, foi aprovada a Constituição que no artigo 1º enunciava o empenho de Portugal na construção de uma sociedade sem classes, e no 2º vinculava o Estado ao objetivo de assegurar a transição para o socialismo.
O "escândalo" criado pela "inventona" de Ventura - criou ele próprio (inventou) um acordo que reclama e mendiga há três semanas -, e pela imprudência de Montenegro, acabou com, não um, mas dois Presidentes da Assembleia da República - Aguiar Branco, desde já e para os próximos dois anos; e Francisco Assis para os restantes dois.
Está bem. PSD e PS têm a obrigação de defender o regime que, não sendo o melhor é, como acaba de mais uma vez ficar demonstrado, o melhor a que podemos aspirar. É tanto assim que nem a improbabilidade de chegar a vez de Francisco Assis - ninguém acredita hoje que a legislatura consiga sobreviver dois anos - impediu esta saída. Afinal a única possível, depois de três votações inconsequentes: a primeira com a candidatura única de Aguiar Branco, a que se juntaram, na segunda, a de Francisco Assis, promovida pelo PS, e a de Manuela Tender, apresentada pelo Chega, logo que se deu conta da do PS, donde partiram os dois primeiros para a terceira.
Depois de anunciada aos sete ventos a eleição de Aguiar Branco para a Presidência da Assembleia da República, com o declarado apoio do Chega ... saiu bronca.
Luís Montenegro, do "não, é não", acreditou na palavra de Ventura e, sobranceiramente, nem uma palavra sobre o assunto com o PS. Logo à primeira, no primeiro dia, e no primeiro acto da legislatura, viu-se o que aí está, e o que aí vem.
Aguiar Branco precisava de 116 votos para garantir a eleição. Ficou-se pelos 89. As contas são fáceis da fazer: 80 votos da AD, 8 da IL e ... mais um. André Ventura, como é costume, mete os pés pelas mãos. Começou por dizer que o voto é secreto, e que até poderiam ter sido os deputados do PSD a não votar no candidato para, no momento seguinte, justificar por que não viabilizou a eleição do candidato que anunciara apoiar, voltando à narrativa do "espezinhar" um milhão de portugueses.
Ficamos todos a saber, se é que já o não o sabíamos, que, qualquer golpe, qualquer habilidade, qualquer chantagem de Ventura que não resulte, são impiedosos pés esmagadores em cima de um milhão de portugueses. E ficamos também desde já a perceber a habilidade de Luís Montenegro para governar nas condições que resultaram destas eleições...
O resto é "uma vergonha". Como dizia o outro. Que não a tem, nem por onde ela passe.
Ao fim de pouco mais de três meses já se percebeu o que faz o Chega na Assembleia da República com um grupo parlamentar, o terceiro maior no hemiciclo. No acto eleitoral de Janeiro percebeu-se que o partido unipessoal de André Ventura serviu para garantir a maioria absoluta a António Costa. No Parlamento serve-lhe de boia!
O contributo parlamentar do terceiro maior partido é o que se está a ver. Nada que tenha a ver com o país, nenhuma proposta para o que quer que seja, apenas barulho. Barulho para se fazer ouvir, para que seja falado, para se manter na ribalta mediática.
Augusto Santos Silva, precisamente o Presidente da Assembleia da República, foi quem melhor percebeu a utilidade do contributo de André Ventura no actual xadrez parlamentar. Percebeu e começou a explorar o filão logo que esta sessão legislativa foi inaugurada. Logo no primeiro dia, muito antes que todos nós, comuns mortais, o tenhamos percebido.
Esta espécie de moção de censura ao Presidente da Assembleia da República que André Ventura inventou deixou tudo isto muito mais claro. Para continuar a fazer barulho, a única coisa que sabe fazer, repetiu a sua receita de fazer acreditar no que nem ele acredita, lançando mão de um instrumento que não existe, sabendo que não existe e, natural e evidentemente, absolutamente ineficaz.
Até aqui, Santos Silva tem aproveitado para se tornar na "super star" do Parlamento. Agora, a partir dessa condição, aproveitou para se lançar na corrida a Belém. E chegar-se à frente.
Não. Não é uma imitação de Jorge Sampaio. Há trinta anos, Jorge Sampaio chegou-se á frente e meteu pés ao caminho. Santos Silva vai à boleia!
A participação de Zelensky na sessão solene da Assembleia da República, especialmente concebida para o efeito, não frustrou as expectativas. Foi a sua 26ª intervenção em parlamentos democraticamente eleitos, pelo mundo fora. Já havia por isso uma matriz: o objectivo de mobilização internacional para a causa ucraniana substanciava-se na excelência comunicacional, com um discurso bem estruturado e de forte carga emocional, robustecido por referências históricas, geográficas ou até de carácter civilizacional ao país e ao povo a que se dirigia.
Era esta última vertente da sua intervenção a que maiores expectativas suscitava. O resto não seria muito diferente, por muitos mais dados - e mais chocantes ainda - que a continuação da guerra infelizmente lhe permitiria acrescentar ao seu relato. Até apostas se faziam …
Não desiludiu, também nessa vertente mais ansiosamente aguardada. Referiu a dimensão populacional de Lisboa e do Porto para reforçar a imagem a passar sobre cidades completamente destruídas, e referiu-se à ditadura que vivemos e ao 25 de Abril, que vamos festejar por estes dias.
A referência geográfica ao Porto e a Lisboa não mereceu qualquer contestação ao Partido Comunista, que deixou as suas cadeiras vazias, mas não quis deixar de comentar a intervenção que não aprovara. Ainda admiti que o PCP se tivesse sentido insultado por Mariupol ser "tão grande quanto Lisboa", mas não. O insulto foi Zelensky referir-se à revolução dos cravos.
Não, senhora deputada Paula Santos. A senhora, porque foi a senhora que se prestou ao serviço, os seus outros cinco colegas de bancada, e os outros todos que mandam em vós os seis, é que hoje insultaram o 25 da Abril. E seguramente mais de 10 milhões de portugueses.
Zelensky virá discursar na Assembleia da República, por videoconferência, se não ainda na próxima semana, pelo menos na que se segue.
Tarde de mais, dirão uns ... Lembrando-se que já passou, desta mesma forma, por grande parte dos Parlamentos nacionais dos principais países que fazem da democracia a sua forma de vida, pretendendo lembrar que costumamos chegar sempre atrasados a esta coisas, e esquecendo-se que o nosso só agora começou a funcionar.
Cedo de mais, dirão outros ... que andam sempre atrasados, presos não se sabe bem a quê. Nem cedo, nem tarde, diz o PCP, ao som cadenciado do martelo descravado da foice a espetar os últimos pregos no seu caixão. Que simplesmente não o quer ver por cá, sabe-se bem porquê... depois de tudo o que têm sido as suas inacreditáveis posições públicas perante a invasão russa e esta guerra.
Coerência? A tão apregoada coerência do PCP?
Talvez. Mas apenas a coerência de quem se agarra ao passado sem conseguir ver o que está a mudar, e o que há muito mudou. A coerência de quem fecha os olhos e se recusa a ver. A coerência da incoerência. Da mais absurda e hipócrita incoerência!
Aí está mais um momento decisivo no processo de normalização do Chega, com André Ventura a reclamar a vice-presidência da Assembleia da República. Inevitavelmente, porque não conhece outro método, usa a chantagem deforma despudorada - se a Assembleia da República não votar a eleição do seu deputado, o Chega crescerá ainda mais!
A chantagem de André Ventura é todo um manual de paradoxo anti-democrático. Por ser chantagem, mas pelo que está por trás dela. É uma ameaça que reconhece e explicita a própria ameaça que o partido representa para a democracia. O que Ventura diz é simplesmente isto: nós somos uma ameaça à democracia, e se nos dificultarem a ameaça tornar-nos-emos ainda uma ameaça maior!
A expressão eleitoral que o Chega atingiu ao tornar-se na terceira força política representada na Assembleia da República torna-o numa espécie de cavalo de Troia no Parlamento. À democracia compete denunciá-lo, dizer claramente o que está dentro da barriga daquele cavalo de madeira, e enfrentá-lo.
A legitimidade democrática dos deputados eleitos pelo Chega não pode ser posta em causa. A sua participação é tão legítima quanto a de qualquer outro deputado. Essa é a grande superioridade da democracia, permitir expressão e participação aos que a combatem. Reconhecer direitos àqueles que não os reconhecem aos outros.
Isso, a sua legitimidade como deputados, igual à de quaisquer outros, é uma coisa. Outra, completamente diferente, é normalizar o Chega. É dizer que é um partido como qualquer outro, quando não é. É contra tudo o que são os pilares do regime e os fundamentos da democracia. Permitir-lhe assumir a presidência do plenário da Assembleia da República, bem como de qualquer comissão parlamentar, é eliminar todas as barreiras sanitárias da democracia.
A Assembleia da República é que elege os seus órgãos: o presidente, os quatro vice-presidentes, e os presidentes das diferentes comissões parlamentares. Os eleitores apenas elegeram os deputados. São eles, depois, que irão eleger estes órgãos. O Presidente da AR é proposto pelo partido mais votado. Mas tem de ser eleito, e nem sempre o foi, como aconteceu com Fernando Nobre, em 2011. Os quatro vice-presidentes são propostos pelos quatro partidos mais votados. Mas terão que ser eleitos pelos deputados, numa legitimidade tão democrática como a que a ditou a sua própria eleição.
Por toda a Europa, e inclusivamente no Parlamento Europeu, os parlamentos têm democratica e sistematicamente impedido a eleição dos candidatos propostos pelos partidos da extrema direita. Em Portugal, agora, apenas tem de se fazer exactamente o mesmo. Sem medo. O medo é atributo dos regimes autoritários, em democracia não há lugar para o medo!
É este o primeiro grande desafio da nova Assembleia da República. Se, na sua nova constituição, não for capaz de dar uma resposta clara ao medo e à chantagem, a democracia - essa sim - treme. Uma resposta clara é uma resposta clara, não é de meias tintas. E só é clara se todos os restantes partidos, sem excepção, votarem contra a eleição do deputado Diogo Pacheco de Amorim - o escolhido de André Ventura - para vice-presidente da Assembleia da República.
Não sei se foi a primeira vez que um discurso de um Presidente da República nas comemorações oficiais do 25 de Abril foi aplaudido de pé por toda a Assembleia da República. Se não foi, também não foi ainda. Embora tivesse parecido.
E como pareceu, é como se tivesse sido!
O discurso de Marcelo ontem na sessão oficial de comemoração do 25 de Abril merecia a unanimidade e aclamação no Parlamento. E teve-a. O André Ventura não conta!
"Não há nem nunca houve um Portugal perfeito"!
Acompanhe-nos
Pesquisar
Subscrever por e-mail
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.