Os resultados eleitorais definitivos ficaram ontem conhecidos, com o apuramento dos votos da emigração. Com quatro cadeiras de deputados para atribuir, estava em causa - mesmo que, pelo que toda a gente sabia ser o sentido de voto dos nossos emigrantes, se já conhecesse o desfecho - a decisão do segundo partido em deputados eleitos. Já que, quanto ao segundo partido mais votado, que para nada conta, a vantagem do PS era virtualmente impossível de ser anulada pelo voto emigrante.
No entanto não pareceu nada que o que ontem foi conhecido tivessem sido apenas os resultados definitivos das eleições de 18 de Maio. Quis-se dar a parecer que, ontem, 28 de Maio - até a data é apropriada -, foram conhecidos os resultados de uma outra eleição. De umas eleições que se traduziram numa vitória esmagadora do Chega.
- Como?
- A resposta é simples: como sempre!
André Ventura reservou uma sala num hotel da capital para celebrar um resultado já andava a celebrar há dez dias, e as televisões foram a correr atrás dele, repetindo exactamente o que tinham feito atrás das ambulâncias. E fizeram parar o país com directos, discurso do chefe, comentários e mais comentários, aplausos e mais aplausos, ameaças e mais ameaças, nas entrelinhas e fora das linhas. E propaganda. Muita propaganda!
Assim, como sempre. A partir de agora mais ainda assim do que nunca!
Há uma vasta série de teorias para explicar o fulgurante sucesso eleitoral do Chega - melhor, de André Ventura. Em 6 anos, afinal e apenas o tempo de uma legislatura e metade de outra, surgiu e passou de 1% de expressão eleitoral, e um deputado, para 23%, 60 deputados, e líder da oposição.
Não consta de qualquer teoria mas, isso - quatro actos eleitorais no espaço onde ainda se deveria estar apenas a meio da legislatura do segundo - também faz parte da explicação.
A mais clássica das teorias geralmente apresentadas reporta para os vencidos da globalização. É clássica, comum a várias geografias, e não apenas portuguesa. Os operários das regiões industriais - que acabaram com o desaparecimento das fábricas, deslocalizadas para regiões do globo de mão de obra mais barata -, que antes votavam comunista e socialista, migraram o seu voto para a extrema direita.
Com isso se explicaria a votação do Chega no distrito de Setúbal, e na cintura industrial de Lisboa. Mas só explica uma parte!
A transição do voto comunista no Alentejo para o Chega tem o mesmo sentido, mas já carece de outra teoria. E aí surge a imigração, também ela no centro da propaganda política da extrema-direita.
Os imigrantes são culpabilizados pela insegurança - mesmo que as polícias digam o contrário -, pelo aumento dos preços, são acusados de invadirem o SNS, e de encherem as escolas com os seus filhos, subvertendo o quadro de valores nacionais.
E isso explicaria o domínio eleitoral a sul do Tejo, no Alentejo e no Algarve.
Depois há ainda a teoria dos deserdados do regime, aqueles que os governos terão sucessivamente deixado ficar para trás, a empobrecer. Dados ainda ontem dados a conhecer indicam que três em cada cinco portugueses dizem que não ter dinheiro para as necessidades básicas, e que Portugal é o país europeu onde mais cidadãos dizem ter dificuldades financeiras. Toda esta gente pobre canalizaria o seu o voto para a extrema direita como forma de protesto.
Provavelmente a explicação não estará tanto nestas realidades sociais, para as quais, em boa verdade, a extrema-direita nunca apresenta soluções realistas, mas na exploração dessas realidades em ambiente de seita, num registo de desinformação, e de manipulação emocional, de potenciação de ódio. Até encontrar bodes expiatórios fácil e rapidamente assimilados através dos mecanismos das redes sociais, treinados e testados por todo o mundo. O resto é deixado para as televisões.
Na América, Trump teve para isso uma televisão - a Fox. Em Portugal, o mestre André, teve-as todas. Servilmente prontas para transmitir em directo todas as suas encenações messiânicas.
Não havia necessidade, como dizia o outro. Até porque as oposições foram todas oposição à moção de censura. E bem mais assertivas, eficazes e ... decentes.
José Pedro Aguiar Branco demitiu-se das responsabilidades que a sua função lhe impõe, e deixou André Ventura e a sua trupe à solta no Parlamento. E procurou respaldo numa espécie de doutrina engendrada à última da hora, que apresentou numa declaração:
“Os portugueses que vêem o que se passa na Assembleia da República, façam o seu juízo sancionatório, e que perante aquilo que são as condutas e actuações dos seus representantes, façam pelo voto a censura relativamente a esse tipo de práticas”
Só que isto não é doutrina. É abdicação!
Não do tipo "lavo daqui as minhas mãos", que já era grave. É abdicação por ignorância; ou abdicação cúmplice.
Só por ignorância se não percebe que o comportamento dos deputados do Chega é todo um programa de destruição das instituições, e em primeiro lugar da Assembleia da República. Endossar a penalização desse comportamento para o voto dos portugueses em eleições futuras é ser cúmplice nessa destruição.
Desconfio que até os mais distraídos, e os mais crentes, já perceberam que já chega de CHEGA. Que o limite não é o céu, e que, pelo contrário, o Partido de André Ventura já só faz caminho no comboio descendente - tudo á gargalhada, todos á janela, todos em grande reinação ...
André Ventura foi capaz de fazer o seu projecto político pessoal crescer vertiginosamente em pouco tempo. Seria difícil fazer de um projecto pessoal um partido, e virtualmente impossível mantê-lo sozinho.
Um projecto político pessoal basta-se de um bom actor, que saiba manipular exponenciar emoções. Um partido político precisa de muito mais. E precisa acima de tudo de pessoas qualificadas, de quadros.
O projecto político de André Ventura é pessoal. E uni-pessoal. Não tem mais ninguém. Por isso agarra tudo o que venha à rede, sendo que convoca quem queira aparecer, e que quer aparecer quem não tem por onde se mostrar.
E por isso não surpreende que um roube malas nos aeroportos, e aproveite até portes mais baratos da Assembleia da República para vender o produto do roubo. Que outro, muito marialva e ainda muito mais macho, seja apanhado em relações homossexuais pagas com um menor. Ou que não faltem deputados - quase um quinto deles - acusados de crimes como roubo, imigração ilegal, falsificação de documentos, ou desobediência.
Foi uma semana agitada, esta que hoje termina, ainda agitada, no dia em passam sessenta anos sobre a morte de Churchil, hoje um monumento político.
Começou com a tomada de posse de Trump. E agitação maior não podia haver. Foi o chapéu da Srª Melania Trump, mais o seu look Gestapo, bem apanhado pela Cristina Torrão. Foi Elon Musk, exuberante na mal disfarçada saudação nazi. Foram Bezos, Zuckerberg e Elisson, no inédito que junta os quatro mais ricos do mundo na posse de um presidente de um Estado. Onde, ainda assim, não faltaram portugueses. Lá estiveram Marco Galinha e André Ventura. E foi a produção televisiva aos pés de Trump, a despachar na festa que se seguiu, em público, ou na reserva da sala oval, reservada para o mesmo efeito.
Prolongou-se pelo mesmo Trump, a ameaçar taxar tudo o que viesse de fora. E a convidar as empresas que produzem fora para que os americanos comprem barato a regressarem. Para produzir no país a preços a que não conseguem vender. Ou nem sequer conseguirem produzir porque, ao mesmo tempo, Trump quer expulsar de lá a mão de obra latina e sul-americana, para meter os americanos a trabalhar na agricultura, na pecuária, a lavar louça no Macdonald´s, a limpar as ruas, nos táxis e ubers, a meter gasolina, ou a entregar hot dogs, pizzas e hamburguers em casa dos outros americanos.
Continuou com o pipy da Cristina, e sabe-se como a Cristina, com ou sem pipi, agita o país.
Passou pelo sismo no Bloco de Esquerda - primeiro desmentiu e acusou o mensageiro, depois reconheceu o desvio - com a notícia de ter despedido trabalhadoras (inicialmente as notícias falavam de cinco, mas acabaram por se ficar em duas) que haviam sido mães e estavam a amamentar.
E pela surrealidade a tomar conta do Chega, com o deputado açoriano Miguel Arruda apanhado a roubar malas nos aeroportos de Lisboa e de Ponta Delgada, e a vender "on line" o produto do roubo. André Ventura, como é costume, foi esperto a tratar do assunto. Nem assim lhe correu bem...
E vai acabar com a Hermínia, a tempestade que se está neste momento a desenvolver no Atlântico para passar por cá o fim-de-semana. Espera-se que bem menos agitada que a Éowyn, que espalhou o caos por toda a Grã-Bretanha, e obrigou milhões de britânicos a ficarem hoje em casa.
Diz a revista Sábado que, em média, os deputados do Chega duplicaram os rendimentos que auferiam antes de chegarem à Assembleia da República. Em média, porque há uns que simplesmente não tinham antes quaisquer rendimentos, e outros em que o vencimento de deputado multiplica por sete, oito, nove, dez ou mais vezes o rendimento anterior.
A Sábado dá nomes e valores. Não há um único deputado do Chega que tivesse vindo para a política a perder dinheiro.
Ora isto só dá para duas conclusões: ou os deputados do Chega são pessoas tão desqualificadas que o mercado de trabalho não lhes reconhecia valor; ou os deputados do Chega são pessoas que viviam na (e da) marginalidade, em absoluta evasão fiscal.
Nenhuma delas é propriamente abonatória. Muito menos surpreendente!
A morte de Odair, um cidadão português de origem cabo-verdeana, na madrugada da passada segunda-feira, no bairro da Cova da Moura, atingido a tiro por um polícia (jovem, de 20 anos) em circunstâncias oficialmente ainda por conhecer - mas já suficientemente conhecidas para que se saiba que a Direcção Nacional da PSP mentiu nas primeiras reacções à notícia (designadamente ao referir que a vítima mortal utilizava um carro roubado e que estava armada com uma faca) e que foi uma infracção de trânsito (pisar um traço contínuo) que despoletou a perseguição policial, abriu uma semana de rara violência.
Violência - e vandalismo - nos bairros ditos problemáticos da periferia da capital, que se prolongaram por toda a semana, mas também violência e vandalismo verbal no espaço político.
A primeira, que se espalhou pelos bairros pobres dos concelhos da Amadora, Sintra, Oeiras, Odivelas, Loures e Lisboa, emanou das próprias condições de vida dessas populações, da mais ou menos crónica perseguição de que são objecto, e foi potenciada pela acção da polícia subsequente ao próprio assassinato (primeiro no comunicado que falsificava os actos e, depois, numa invasão de rostos tapados à residência da vítima) e pela marginalidade latente dos guetos.
A segunda, que se espalhou por todo o espaço mediático, emanou do oportunismo político e do preconceito racista protagonizados por André Ventura e seus correligionários, com declarações igualmente incendiárias e criminosas, a que reagiu a sociedade civil com uma petição para uma queixa crime, e com a própria Procuradoria Geral da República (PGR) a anunciar a abertura de um inquérito.
Um movimento Vida Justa, envolvido com as condições de vida destas populações, marcara para hoje, às 15 horas, uma manifestação com início no Marquês de Pombal para terminar na Assembleia da República, sob o lema "sem justiça não há paz". Logo de seguida André Ventura tratou de marcar uma outra, de sinal contrário, com início na Praça do Município e igual destino, sob o lema "polícia sim, bandidos não".
As palavras de ordem diziam tudo. O movimento Vida Justa alterou o destino, de S. Bento para os Restauradores, para evitar confrontos. As polícias velaram para prevenir provocações, e as manifestações decorreram sem incidentes.
Com tranquilidade, 10 mil pessoas chegaram aos Restauradores, onde se falou de paz e se reclamou justiça. E 200 chegaram às escadarias da Assembleia da República, com André Ventura a apropriar-se do hino nacional e a reclamar a sua "revolução" - “a verdadeira revolução em Portugal". Que "não há prisão que pare"...
É na Suíça que o Chega atinge a sua maior expressão eleitoral, tendo sido o partido mais votado nos dois actos eleitorais. Nas legislativas, de 10 de Março, e agora, nas europeias.
O Expresso deste fim-de-semana - no contexto das visitas do Presidente da República e do Primeiro-Ministro ao país, e à comunidade portuguesa que lá vive, a propósito das comemorações do 10 de Junho - publica uma reportagem que pretende dar conta das motivações para aquele sentido de voto.
Entre as diversas justificações apresentadas, umas simplesmente muito "tugas", outras de evidente permeabilidade ao discurso populista, há uma que saliento. O entrevistado é apenas apresentado por António, e explica que as pessoas não votaram em André Ventura por todas aceitarem as suas ideias, mas por nele encontrarem "um refúgio" para a sua revolta. "As pessoas estão revoltadas" - rematou!
Não explicou por quê. Nem isso lhe foi perguntado. Mas é a própria autoria da reportagem a avançar que a "perceção de insegurança, as medidas da habitação do Governo anterior e as dificuldades no Serviço Nacional de Saúde" são os principais motivos da revolta.
Não quero concluir que os principais motivos da revolta que leva os emigrantes na Suíça a votarem no Chega tenham sido dados pelos autores da reportagem. Da sua conta e risco. Mas faz alguma espécie que os emigrantes na Suíça, que por lá têm vida organizada - supõe-se que bem - sintam por lá a insegurança, as dificuldades de habitação, ou as do Serviço Nacional de Saúde, em Portugal. Onde não vivem. E faz-me mais ainda que as sintam tão intensamente que lhes provoquem a tamanha revolta que só afogam no voto no Chega.
Mas não posso deixar de concluir que é com reportagens destas, tratadas e divulgadas desta forma, que a imprensa dita de referência vai normalizando e alimentando o Chega.
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