A contestação social que tem atravessado o país e que, tudo o indica, se agravará rapidamente, tem-se centrado no objectivo da demissão do governo. É certo que não é apenas a rua a exigir a demissão já, essa é uma exigência praticamente transversal na sociedade portuguesa, desde as manifestações mais espontâneas às mais preparadas e organizadas. Das acções estritamente corporativas às politicamente mais abrangentes. Das galerias às bancadas da Assembleia da República, ou à Aula Magna…
É uma exigência compreensível e mesmo legítima. O governo violou e continua a violar todos os compromissos eleitorais que assumiu, violou e viola direitos, mesmo que constitucionalmente garantidos, despreza e ignora princípios democráticos básicos, mente e engana os portugueses como nenhum outro. Como se tudo isto não fosse suficiente falhou todos os objectivos que se propôs alcançar, e em nome dos quais exigira sacrifícios desmesurados aos portugueses. Contra tudo e contra todos defendeu o indefensável, foi para além da troika, destruiu a economia e o país... Disse uma coisa e o seu contrário, mandou os portugueses embora e cortou-lhes a esperança, de que é feito o futuro.
Tudo isto é verdade e tudo são razões mais que suficientes para que os portugueses se queiram ver livres deste que é seguramente o mais incapaz e incompetente governo que o país conheceu. Mas não vale de muito demitir o governo, seja lá de que forma for. Caído o governo, e sendo de todo improvável uma substancial alteração do comportamento do eleitorado, será o PS a ganhar as eleições e António José Seguro a formar governo - muito provavelmente com os mesmos que hoje governam. O que vai dar exactamente no mesmo: substituir Passos Coelho por Seguro é manter o mesmo perfil, a mesma impreparação, se não também a mesma política.
Seguro é o Passos Coelho do PS, eventualmente mais incapaz ainda. Tomou o aparelho do partido e escondeu-se, fingindo-se de morto, à espera que o poder lhe caísse no colo. Replica agora no país o que fez no partido, na garantia do mesmo resultado. Basta ver como anda desaparecido... Quando o país fervilha e as decisões apertam, Seguro está escondido algures, atrás de um arbusto qualquer, à espera que passe… António José Seguro já não é apenas o líder baço que não convence nem entusiasma ninguém. É uma figura ausente e vazia, simples refém de uma clique que já se atropela na fila para o pote.
Com esta liderança o PS não é alternativa. E se os socialistas não têm lucidez e sentido patriótico para perceber e resolver isto, não resta outra alternativa aos portugueses que, antes e em vez de exigir a demissão do governo, passarem a exigir na rua a demissão desta liderança socialista!
Com a aprovação na especialidade do Orçamento para o próximo ano cumpriu-se mais um ritual. A maioria aprovou o que o governo quis que fosse aprovado e, quando o presidente insiste no seu esgotado ritual de apelo ao consenso, não se limitou a ignorar as propostas da oposição. Foi mais longe e sentenciou que, consensos, só com outra liderança na oposição… Quer dizer, a maioria já não quer apenas limitar-se a determinar a governação, acha que deve ainda determinar a oposição. Do tipo: esta oposição não serve, queremos outra para brincar aos consensos!
E pronto já só falta o ritual de suspense do Tribunal Constitucional. E, claro, o dos sucessivos orçamentos rectificativos, porque este, mais ainda que todos os que ficaram para trás, não é para cumprir. O que não significa que não faça mal: não vai ser cumprido, mas faz todo o “mal” que tem a fazer. Sem que atinja nenhum do “bem” que apregoa!
Não faltou também o ritual de contestação, um pouco por todo o país, mas especialmente à frente do Parlamento, onde desta vez ninguém subiu as escadas. E, lá dentro, à hora da intervenção final da ministra Albuquerque, gritou-se demissão - um clássico seguido do ritual de evacuação das galerias!
Pelo sim e pelo não, não passem as coisas para lá dos rituais, Passos Coelho cancelou a viagem à Lituânia marcada para quinta e sexta-feira...
Se a semana havia sido negra, o fim-de-semana não foi melhor.
O ministro da saúde marcou uma conferência de imprensa para o ministério, onde acreditava que o sindicato dos médicos compareceria, mesmo que tivesse dito que não. Não apareceu, mas apareceram os jornalistas. Que tinham sido convocados, mas afinal deveria haver ali um mal entendido qualquer, concluiu o ministro entregando-lhes um simples comunicado!
O primeiro-ministro prosseguiu a sua cavalgada da onda levantada pelo Tribunal Constitucional, que acha que lhe permite tudo. Até a chantagem! Dizer – como o fez hoje Passos Coelho – que quem disser que a compensação dos cortes dos subsídios tem que ser feita no lado da despesa, tem de dizer que cortes é que pretende no Serviço Nacional de Saúde e na Educação, é chantagem sobre os portugueses. E chantagem é aquilo a que gente pouco recomendável recorre quando esgotou todos os argumentos. Acontece quando se perdeu o carácter. E a vergonha! É triste, muito triste, ter que retratar assim alguém que há apenas um ano mobilizava a esperança de tantos portugueses…
Cá para mim isto não passa de mais um episódio na guerra surda entre S. Bento e Belém. Passos Coelho não perdeu tempo. E não quis apenas mostrar a Cavaco como se faz; quis marcar a diferença e ajudar a enterrá-lo ainda mais!
A greve geral deste dia 24, que acaba de chegar ao fim, não foi muito diferente das outras. A mesma data - 24 de Novembro – do ano passado. A mesma repetição, até à exaustão, da legitimidade do respectivo direito. Toda a gente acha que a greve é um direito indiscutível, inalienável e que tem que ser respeitado.
Toda a gente acha que a greve é um direito respeitável, mas… Pelo que se viu por aí fora há sempre um mas, toda a gente tem uma mas a acrescentar. Que, mais ou menos atabalhoado, mais ou menos engasgado, serve tão simplesmente para dizer que o direito à greve existe mas não devia existir! Tal e qual!
Verdadeira novidade foi a ausência da famosa e clássica guerra dos números. Já diz o povo: para teimar são precisos dois! Como para dançar o tango, como dizia o outro… Os sindicatos não deixaram os seus créditos por mãos alheias – as coisas também não estão para isso – e, sem abdicar do seu papel, partiram para a luta. E não fizeram a coisa por menos: mais de 90%! O governo ainda deu mostras de ir a jogo – logo pela manhã já estava de peio feito e de provocação em grande estilo a anunciar os seus 3,6% - mas, depois, o patrão Relvas deu meia volta e mandou recolher. Não entramos nessa guerra – sentenciou. E pronto, não há discussão, ninguém teima e não há guerra!
Não será certamente novidade que muita gente que achava que deveria ter feito greve tenha ido trabalhar. Como não é novidade nenhuma que a adesão à greve tenha sido grande no sector público e muito reduzida no sector privado. O que de algum modo terá suavizado os terríveis prejuízos para o país…
Se a mobilização para a greve advém das dificílimas condições de vida impostas aos portugueses – não importa se com ou sem alternativas, e nem sequer se com ou sem enquadramento no manifesto do Dr Soares – é claro que, da imensa e esmagadora maioria dos portugueses que vive os mais duros dias das suas vidas, grande parte estaria disponível para aderir à greve. Razões não lhes faltam! Muitos – muitos mesmo – não o fizeram porque não podem sequer prescindir do salário que perderiam. Outros não o fizeram por conflito de interesses. Pela consciência – particularmente no sector privado - de que o seu direito legítimo de fazer greve conflituava com o interesse da empresa que lhe garante o sustento ou - mesmo no sector público – de que o exercício desse seu direito prejudicava outros concidadãos.
É natural que a adesão se tenha concentrado no sector público. É historicamente assim. É aí que se concentram os trabalhadores – não digo os portugueses – mais penalizados e é aí, apesar de tudo e sem paradoxos, que ainda poderá residir alguma capacidade para perder um dia de salário. Vamos a ver se isto não dá mais umas ideias ao governo, acabando por descobrir que, afinal, ainda há lá mais uns trocos para sacar!
O resto são posições ideológicas. Os que são contra as greves. Porque sim! Os que as vêm como o remédio para todos os males. Ou os que as delas têm uma visão meramente instrumental. Os dos mas e até os que acham que a chinesa Dagong e a americana Fitch acabam de baixar o rating da República (mais um lixo) precisamente por causa da greve.
Há gente que não percebe que as sociedades precisam de válvulas de escape. E que, nas actuais circunstâncias, é fundamental que a mais que justificada indignação esteja institucionalmente enquadrada. Para que incidentes sem expressão - como simples actos de vandalismo em meia dúzia de locais (entre os quais algumas repartições de finanças) ou os incidentes do final do dia junto ao palácio de S. Bento – não venham abrir caminho a fenómenos de contestação difusos e inorgânicos, que facilmente degeneram em descontrolada violência social.
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