É um jornal - o DN, na foto - a dar a notícia que a criminalidade caiu 1,3% mas que os jornais a apresentaram como se tivesse aumentado 130%.
Refere-se a um Relatório do Observatório de Segurança e Defesa da SEDES, que revela que uma análise às primeiras páginas dos jornais Diário de Notícias, Correio da Manhã, Público, Expresso e Sol, ao longo de 25 anos, entre 2000 e 2024, mostra que a menção a crimes nas primeiras páginas aumentou 130% quando, nesse período de tempo, o número de crimes desceu 1,3%.
Refere ainda o Relatório que a permanência destas notícias nos jornais também aumentou significativamente - até mais de quatro dias. Curioso é que o coordenador do Observatório de Segurança e Defesa da SEDES, general Vieira Borges, tenha relacionado esse dado com interferência dos partidos políticos, ao referir que “há partidos que usam os crimes como instrumento político”, o que força os jornais a “voltar a dar a notícia”.
É assim que são criadas as "percepções". Depois ... Bom, depois é o que se conhece!
Foi com alguma perplexidade que há uma semana dei conta que o Cardeal Américo Aguiar, agora Bispo da Diocese de Setúbal, se tinha também convertido ao comentário televisivo, e disso feito fonte de proveitos, presumo.
No caso, na Now, o segundo canal do Correio da Manhã. Que seria supostamente uma espécie de canal premium.
O lado premium foi perseguido com a introdução do comentário político com assinatura. Lugares de tribuna entregues a tribunos como Nuno Severiano Teixeira, Vasco Rato, Santana Lopes e António Costa, entretanto (pour cause) substituído por Fernando Medina, gente que influencia mas que, mais importante que tudo, dá influência. Talvez por isso esse espaço de chame "Informação Privilegiada".
Depois descampou para pouco mais que uma extensão da CMTV, acabando ambas como que uma espécie de Mr Dupont e Mr Dupond. Enquanto a CMTV se dedica ao debate taberneiro da bola, a Now ocupa-se dos acidentes e dos crimes. E vice-versa, para que o sangue não pare de escorrer. É a fileira há muito descoberta.
É na bissectriz deste percurso que surge a contratação - no mercado de inverno - do Cardeal Américo Aguiar. Não cabendo o comentário de assinatura na taberna da bola - onde bem poderia estar a representar o seu Porto - teria de ir parar ao outro lado, à "Informação Privilegiada". E lá está, á sexta-feira, para comentar todos os acidentes, aéreos ou rodoviários, e todas as facadas da semana.
De ontem, destaco dois desses comentários:
O primeiro sobre o acidente aéreo em em Washington, na quarta-feira. Foi a segunda pessoa, logo a seguir a Trump, a identificar as causas do acidente. Trump encontrou-as nos programas de inclusão e diversidade das anteriores administrações democratas; o Cardeal Américo Aguiar em "falhas graves de equipamentos ou de funcionários" manifestando-se perplexo por isso ter sucedido nos Estados Unidos;
O segundo sobre o que acontecera em Sesimbra na madrugada anterior, para o remeter para o quadro de desvalorização da vida que se instalou na sociedade, desde o seu início, no espaço intra-uterino, ao seu términos, na velhice.
Aquilo que, no exercício das suas funções, "é um cancro" passa, no seu espaço de televisão que mais não é que um direito de antena remunerado (nisso não difere para qualquer dos todos os muitos outros, incluindo os que o fizeram, e os que o continuaram a fazer, com claros objectivos políticos pessoais), a ser uma mera consequência da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, e/ou da legalização da morte medicamente assistida.
Uma mulher, ainda jovem mesmo que o não pareça, sem abrigo, pede uma esmola a um transeunte. De volta recebe um tiro, e cai morta.
Abeirara-se do transeunte, e pedira-lhe um real, para comprar pão. O assassino meteu a mão à mala mas, em vez da moeda pedida, tirou de lá a pistola que de imediato disparou friamente sobre a pobre jovem mulher. E seguiu caminho, como se nada mais tivesse acontecido que livrar-se de uma mosca incómoda que se lhe atravessara à frente. É um comerciante estabelecido na zona, e tem a porta do estabelecimento para abrir...
Aconteceu ontem, em Niterói, ali ao lado do Rio de Janeiro. No Brasil, de Bolsonaro.
Poderia não ser mais que mais um assassínio, num país em que acontecem a toda hora. Mas não é. Este é um crime com assinatura. Este é o tipo de crimes onde não é possível apagar o nome de Bolsonaro.
Assistimos nos últimos dias a uma onda de violência e morte envolvendo jovens muito novos, entre os 14 e os 17 anos.
A série iniciou-se em Ponte de Sor, o primeiro mas também o mais mediático desta trágica sequência de acontecimentos, pelo envolvimento de dois filhos do embaixador iraquiano em Portugal, de 17 anos, numa selvática agressão que deixou outro miúdo, de 15 anos, em coma, de que felizmente acaba agora de sair. E com acesa discussão pública à volta da imunidade diplomática. E da impunidade. E da desigualdade de tratamento e de acesso à comunicação.
Prosseguiu poucos dias depois, em Gondomar, com um rapaz de 16 anos a deixar outro, de 14, às portas da morte, que infelizmente se abriram pouco depois, no Hospital. Logo de seguida, e curiosamente ainda em Gondomar, outro miúdo, também de 16 anos, foi igualmente morto. Desta vez pelas balas da polícia, na sequência de um assalto, seguido de abalroamento da viatura policial.
As circunstâncias variam em cada um dos casos. Mas, à excepção do último, que resulta directamente da prática de um crime, já á partida em modo de delinquência, as diferentes circunstâncias decorrem de evidentes comportamentos impróprios para as suas idades – a hora dos acontecimentos, madrugada alta, o consumo de álcool, e outros porventura mais discutíveis – a suscitarem questões de enquadramento social, distúrbios funcionais, ambientes familiares desestruturados, e ausência de regras e valores no processo educativo.
São problemas transversais a praticamente todas as sociedades actuais, que não são naturalmente fáceis de resolver, e que inevitavelmente produzem ocorrências desta gravidade. O que têm de raro – e felizmente que o é – é a concentração temporal. É terem-se sucedido em tão poucos dias. E o que têm de ainda mais perigoso é, por essa sucessão e pelo impacto mediático, poderem desencadear fenómenos de mimetismo. É poderem funcionar como detonador de novas ocorrências de violência extrema e descontrolada. Campo fértil para isso é o que não falta quando a delinquência se cruza com a juventude com demasiada facilidade.
* Da minha crónica de hoje na Cister FM
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