Um mito em fim de linha
Por Eduardo Louro
Criamos e desenvolvemos determinados cultos ao longo da vida. Uns ficam para toda a vida, outros vão ficando pelo caminho. Quase sempre com dor, com algum sentimento de perda...
Fui, durante muitos anos, frequentador habitual da Trindade – da Cervejaria Trindade, há dois séculos instalada no convento da Trindade, ali a meio caminho entre o Chiado e o Bairro Alto. Tudo começou na minha juventude e, como muitos outros portugueses – lisboetas ou não – rapidamente transformei aquele belo espaço num local de culto e de tertúlia. E, naturalmente, o bife e a cerveja, únicos e irrepetíveis no meio daquela fantástica azulejaria, no motivo de culto.
Mais longe ou mais perto, nunca ao longo de 40 anos estive muito mais de um mês sem por lá aparecer. Se, como aconteceu durante alguns anos, trabalhava por ali por perto, não havia semana que lá não pusesse os pés…
Nos últimos três ou quatro anos, à medida que as minhas visitas iam ficando cada vez mais espaçadas, com o aumento do fluxo turístico à capital, a Trindade entrou nos roteiros e foi acentuando a sua internacionalização. E, ao contrário do que deveria ser, mas que infelizmente em Portugal nunca é, a qualidade do seu serviço e dos seus produtos começou a degradar-se e os preços a subir!
Durante algum tempo resisti à realidade. As memórias de uma vida e a profundeza de um culto insistiam em sobrepor-se-lhe, e lá voltava eu, sempre acompanhado de discípulos ou de gente pronta a deixar-se evangelizar. Tinha lá estado pela última vez no final do ano passado, num jantar junto ao Natal com mais sete ou oito. Duns e doutros!
Voltei no passado sábado, ao almoço. Com mais doze, duns e doutros…
Não sou capaz de dizer que foi pela última vez. É sempre difícil encarar a última vez, mais ainda perante um monumento da nossa memória.
Pela primeira vez mandei o bife para trás, sem livro de reclamações e sem resinguices. Discretamente, para que nem na mesa todos se apercebessem. Porque um local de culto merece respeito, mesmo que já não respeite os seus fiéis…
O bife da vazia já mais não é mais que a imagem de uma sola de um sapato velho e roto. Seco, e fino, só para que se possa mastigar, na vã esperança que, por 25 euros, o molho e a cerveja lhe emprestem uma vaga lembrança do sabor de outros tempos…
Saí sem vontade de lá voltar, triste e calado e com pena daqueles que ficaram a pensar que o bife do meu culto era aquilo … E já cheio de saudades dos tempos da minha velha Trindade, de mais um mito em fim de linha!