A sinistralidade rodoviária, e o comportamento dos portugueses ao volante, deram sempre do país uma imagem degradante. No passado, o nível das estradas, completava o triângulo que fazia de Portugal um país rodoviário do terceiro mundo.
Ainda há não muito tempo esta imagem penalizava seriamente o país. Lá fora avisavam-se os turistas para a verdadeira aventura que era enfrentar as estradas portuguesas, e a falta de civismo dos condutores nacionais. Nós próprios tínhamos essa ideia, e conhecíamos bem a nossa propensão não só para a violação das regras de condução como para as da convivência cívica na estrada.
Todos temos experiências disso. Do incumprimento das regras do trânsito, da circulação nas vias da esquerda com as da direita livres, das ultrapassagens de alto risco, do aproveitamento de todas as circunstâncias para dificultar as condições de circulação do outro, da competição feroz na estrada, da intolerância e até das frequentes cenas de pugilato em pleno asfalto.
É, por isso, com grande estupefacção que dou com esta notícia que dá Portugal entre os países com melhores condutores. É um estudo de um site australiano de seguros que revela esta surpreendente classificação, colocando-nos nos dez melhores. Em décimo, mas com a mesma pontuação do nono, Singapura.
O estudo é exaustivo, e merece ser lido. A surpresa é também a Espanha, em oitavo lugar e com uma pontuação muito próxima da portuguesa. Os restantes do top ten não surpreendem, todos países que temos por cívica e socialmente desenvolvidos: Japão, Países Baixos, Noruega, Estónia, Suécia, Áustria, Suíça e Singapura, por ordem decrescente.
No decisivo factor "qualidade das estradas" Portugal surge em quarto lugar, apenas atrás dos Países Baixos, da Suíça e do Japão, praticamente a par. Quando tantas coisas temos para alimentar a nossa propensão para o auto-flagelamento, é bom ver notícias destas para darmos conta como, apesar de tudo, o país mudou nos últimos 30 anos.
Tanto que às vezes nem nos reconhecemos.
Já agora, entre os 10 piores países, estão a Índia, Malásia, Turquia, Brasil ou Estados Unidos.
Quando começamos a ouvir os números do balanço da GNR à sua operação de Natal – este ano chamada de “Natal tranquilo” – começamos a achar estranho. Tínhamos dado por garantido que acidentes e mortes na estrada, sendo inevitáveis, eram praga sob controlo e cada vez mais residual, e por isso soava-nos a estranho que as estatísticas tivessem disparado.
Quando constatamos a mesma coisa na Operação Ano Novo, percebemos que estávamos perante uma tendência, e não apenas a chocar de frente com qualquer coisa de circunstancial.
Olhamos para os dados anuais e, com alguma estupefacção, confirmamos isso mesmo. A sinistralidade nas estradas portuguesas, e a sua consequência mais drástica – a morte (513 mortes no ano que acaba de se despedir) – cresceu em 2018, em relação a 2017, quando já tinha também crescido relativamente ao ano anterior. São dois anos a inverter uma tendência que vinha já dos anos 90, com mais de vinte anos.
Os acidentes de automóvel e as mortes na estrada são dos mais fortes indicadores de desenvolvimento. São uma chaga, uma catástrofe nos países subdesenvolvidos, e praticamente marginais nos países mais desenvolvidos.
Percebe-se por quê. Melhores estradas, melhores carros, melhor educação... Aí está!
Temos por cá boas estradas, mas na sua maioria caras, o que empurra a maioria do trânsito para as que têm menos condições e mais perigos. Não podemos dizer que sejamos um país equilibrado na distribuição da frota automóvel, mas também não é nos automóveis que mais nos afastamos da média europeia. Deixamos de ver, com a frequência que víamos, a mais surreal agressividade que há uns anos víamos nas nossas estradas, em que o mais pacato cidadão se transformava num terrorista logo que se sentava ao seu volante. Mas estamos ainda longe de cumprir com a maioria dos requisitos cívicos da cidadania.
Que não são, de resto, especialmente induzidos pelo Estado quando, em vez de canalizar os seus recursos para enfrentar a guerra nas estradas, prefere utilizá-los na caça à multa.
Parece que é isso. Que temos tudo para ser um país desenvolvido, mas falta sempre qualquer coisa.
O Governo propõe agora novo incentivo para combate à evasão fiscal e, para evitar a fuga à facturação, habilita os “cumpridores” ao sorteio semanal de um automóvel, como se faz em países da América Latina. Temos de reconhecer que estes governantes tudo fazem para nos tornar cada vez mais numa massa ignara, sem intervenção crítica capaz de exigir até ao limite que se actue sobre quem foge à receita fiscal com milhares de milhões de euros, porque há cobardia e, por isso, só se evoca o sentido cívico daqueles que não pedem a factura do pão ou da bica.
Para não fazer juízo em matéria de que não tenho a mais correcta avaliação e solução, recorro a Óscar Afonso, professor na Faculdade de Economia na Universidade do Porto e Vice-Presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF), o qual reconhece que a evasão fiscal tem vindo a aumentar (24.2% do PIB em 2009, 26.74% em 2013), face à taxa de desemprego e aumento de impostos. E aponta como medidas mais eficazes no combate à “economia não registada” (designação que adopta), as seguintes:
“Maior transparência na gestão dos recursos públicos. Uma educação da sociedade civil mais intensa sobre os efeitos perversos da economia não registada. Justiça mais rápida e eficaz, em particular na condenação do enriquecimento ilícito. Combate à fraude empresarial, nomeadamente à existência de empresas fantasmas, à manipulação contabilística, a relatórios fraudulentos, ao uso de informação privilegiada. Combate á utilização abusiva de convenções de dupla tributação. Incentivo ao uso de meios electrónicos nas transações de mercado. Combate ao branqueamento de capitais”.
Mas este tipo de medidas não são apetecíveis pelo Governo que protege interesses e gosta de populismos mediáticas do tipo televisivo em que o participante fica logo habilitado a um cheque ou um automóvel. É uma forma de democracia do contentamento e “uma democracia contente é um regime resistente às mudanças”, conforme nos diz John Kenneth Galbraith (1908-2006).
O Governo toma uma atitude racional ao seguir o exemplo dos países da América Latina, porque a nossa identidade de “valores culturais” é próxima daqueles países e não dos países do centro e norte da Europa, como se pode ver no estudo “The World Value Survey Cultural Map” que demonstra essa aproximação. Do mesmo estudo retiro o mapa lá de cima, onde se pode ver que, nesta avaliação, Portugal integra a América Latina, conservadora e mais corrupta, bem distante da Europa Protestante onde se localizam a Alemanha e os países nórdicos, e mesmo da Europa Católica onde estão a Espanha e a Itália. Na verdade, muito nos afasta da Europa quando esta continua com a centralidade na Alemanha e a expandir-se para leste. Geograficamente, somos a sua ponta mais ocidental, inseridos na plataforma ibero-atlântica e, em toda a história, mais virados para os continentes africano e sul-americano onde fomos colonizadores.
Na ambição, Portugal sempre foi um país grandioso, mas na atitude sempre foi muito pequeno. No período dos Descobrimentos, perante a fome e a miséria, fizemo-nos ao mar, conquistámos oceanos e continentes e, a pretexto de evangelizar gentios, espoliamos e escravizamos. No passado recente trocamos o que restava do império colonial pela “liberdade”, enorme valor de Abril de 1974, valor que também a nossa pequenez de atitude profanou, levando-nos à condição de um protectorado daqueles que são os nossos credores e, por isso, mandam em nós, retirando-nos a liberdade e a dignidade. Devemos, também, recordar que os nossos políticos garantiam o nosso merecido mérito de integrar a União Europeia, e mais, que iriamos integrar o “pelotão da frente” para a União Económica e Monetária. Para nós, só podia ser o “pelotão da frente”. Mas como não cuidamos de ter o nível educacional e civilizacional daqueles que estão no “pelotão da frente”, estamos onde estamos, envergonhados e submissos, apesar de termos governos “calibrados” pelo contentamento. Extermínio de aposentados e funcionários públicos, mas euforia na ida aos mercados. Críticos na oposição, mas contentes no poder.
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