Talvez nenhum sentimento se cole tanto ao regresso às aulas como a ansiedade. É certo que também lá cabem alegria, expectativa, sonhos e ilusões. Mas nada bate a ansiedade dos que entram pela primeira vez no mundo desconhecido da escola. E a dos pais que os deixam pela primeira vez à porta desse mundo novo.
É sempre assim a cada ano que passa. Primeiro é a excitação das compras do material para a escola, do que é imprescindível e do que pouca ou nenhuma falta virá a fazer, porque há muito que o mercado potencia sem limites a oportunidade que aqui descobriu. Mas depois vem a angústia do fim das férias, a adaptação a novos ritmos, o adeus a zonas de conforto. E vêm as expectativas, as dúvidas e as inseguranças. De pais e de filhos…
Este regresso às aulas, que teve no dia de ontem o seu ponto alto, e a data limite para que as escolas abrissem as portas aos seus alunos, tem tudo isso. Mas tem muito mais, com muita mais ansiedade.
As escolas abrem na fase da maior actividade da pandemia, aos níveis de Abril, mas num período de maior complexidade e de mais incerteza, com a (grande) probabilidade de terem de voltar a fechar transformada numa espada sobre a cabeça de todos nós. Mesmo dos que, não tendo filhos em idade escolar, acham que não têm a nada a ver com o assunto.
Têm. Temos todos. Os pais, que tiveram que lidar todos estes meses com os filhos em casa, com a vida virada do avesso, não vão conseguir passar por outra igual. E isso toca-nos a todos. As escolas fechadas aprofundam desigualdades e, a cada vez que a desigualdade cria mais desigualdade, nasce uma espiral de crescimento exponencial do número dos que ficam definitivamente para trás.
Chegados à terceira fase de desconfinamento as coisas parecem complicar-se. Os números dos novos casos de infecção na grande Lisboa activam sinais de alarme e sugerem passos atrás. Os números, mas também as circunstâncias da propagação do vírus.
A taxa de transmissão da doença nas zonas suburbanas da grande Lisboa está fora de qualquer padrão nacional e o vírus está, final e claramente, a revelar a dinâmica de desigualdade social, de miséria e de pobreza que se sabia que arrastaria consigo. Situações de pobreza, de habitação degradada e de precariedade social aceleraram a taxa mas também o paradigma da transmissão da doença: aos idosos, em lares, do Norte há algumas semanas, sucedem-se agora, na grande Lisboa, adultos jovens em contexto laboral, como no concelho da Azambuja, ou de bairros degradados, como nos de Loures ou do Seixal.
Não são apenas realidades sócio-sanitárias muito diferentes, são realidades com riscos muito distintos. E esta é bem mais perigosa!
As regras que o governo se prepara para anunciar para esta terceira fase de desconfinamento terão naturalmente isso em consideração. Poderão não dar alguns passos atrás, mas anularão certamente outros passos em frente. Sobre o aprofundamento das desigualdades sociais que se desenham a traço grosso é que não poderão fazer muito. Talvez os 26 mil milhões de euros que se espera que aí venham possam fazer alguma coisa...
A notícia já é de ontem, como o jornal. Mas não é nova, nem perdeu actualidade, e vem-se repetindo todos os anos, por esta altura.
Por esta altura começam a ser publicadas as contas das empresas, começa-se a olhar para os números e, invariavelmente, chega-se a conclusões como esta na capa do JN de ontem. Em 2014 o multiplicador era 33: em 2014 os gestores ganhavam 33 vezes mais que os seus "colegas" trabalhadores . Em quatro anos esse multiplicador subiu para 52, cresceu perto de 60%!
Não está reflectido na capa do jornal, mas é outra conclusão que se retira, da mesma forma, das contas das principais empresas: nesse período, desde 2014, não houve aumentos salariais para os trabalhadores. Mas os salários dos gestores foram continuando a aumentar pelo que o multiplicador da desigualdade se tem multiplicado.
Poderia sempre dizer-se que ... é o mercado. É o mercado de trabalho que faz isso. O talento é raro, e paga-se caro. Pois... mas nem de perto nem de longe justifica as 52 vezes mais, que não se verificam em mais nenhum país europeu.
Não, não é o mercado a funcionar. Até porque na sua imensa maioria esses salários são decididos em ca(u)sa própria. É mesmo o agravamento da injustiça social na sociedade desigual que somos e continuamos a querer ser. É mesmo o exemplo vivo da sociedade mais desigual da Europa, que acha que é ao Estado que cabe tratar da desigualdade social. Mas apenas através de mecanismos assistencialistas, nada de confusões... Que, nisto, o Estado não tem nada que se meter...
Pelos vistos, tem. E muito. Até porque a pobreza já atinge quem trabalha, e isso é inadmissível numa sociedade que se queira decente. E porque, se calhar, estão aqui as maiores raízes do eterno problema da produtividade do país. Que, por serem raízes e estarem escondidas debaixo da terra, nenhum FMI nem nenhuma OCDE vêm.
O Relatório da Oxfam (Oxford Committee for Famine Relief , ou seja, Comité de Oxford de Combate à Fome), ontem publicado, faz-nos revelações absolutamente chocantes. Que oito homens têm tanto dinheiro como a metade mais pobre do planeta; que os rendimentos dos mais pobres subiram três dólares/ano entre 1998 e 2011, quando o rendimento de 1% dos mais ricos aumentou 182 vezes; que na última três décadas o crescimento dos rendimentos dos 50% mais pobres foi zero, mas o dos 1% dos mais ricos foi mais de 300%; ou que, por exemplo, o homem mais rico do Vietname ganha mais num dia do que o mais pobre em dez anos.
Para termos uma mais clara noção da dinâmica real que sustenta o cliché dos ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres, basta reparar - como há precisamente um ano aqui fazia notar, chamando-lhe "Monstro Autofágico" - que em 2013 eram precisos mais de 300 dos mais ricos para igualar o rendimento da metade mais pobre do mundo. Na ano seguinte esse número baixou para metade. Novo ano, 2015, e baixou para 62. Pois agora, dados de 2016, são precisos apenas 8!
Começa hoje o forum de Davos. Devia começar exactamente pela leitura deste Relatório. Não é por aí que vai começar, e o mais provável é que ninguém sequer fale destes números obscenos. Fazem mal!
Porque isto é insustentável. E não pode acabar bem!
Numa altura em que em Portugal parece que anda tudo doido, não é mau ouvir o discurso de Obama, ontem nas Nações Unidas: "Um mundo em que um por cento da economia controla os outros 99 por cento nunca será um mundo estável..."
Só para lembrar. Às vezes quer-se distrair as pessoas. E as pessoas querem ser distraídas...
Em 2013, há apenas dois anos, chocáva-nos que apenas trezentas e poucas pessoas, os trezentos e tal mais ricos, detivessem tanta riqueza quanto metade do mundo, a metade mais pobre. Um ano depois esse número baixava para menos de metade e em 2015, dois anos depois, para 62. Nem mais: hoje, os 62 mais ricos do mundo acumulam uma riqueza superior à de metade da população mundial. E, pelo vistos, isso já não choca ninguém. Pelos vistos, o mundo aceita que assim seja. Pelos vistos, o sistema transformou-se num monstro que conseguiu eliminar todos os obstáculos ao seu crescimento ilimitado e à ganância insaciável dos que o dominam. Mas esqueceu-se de um pequeno pormenor: a ganância tornou-o autofágico. É que a distribuição de riqueza não é apenas um indicador de desenvolvimento. É também um factor central de crescimento económico. E o crescimento económico é o oxigénio do sistema...
O estudo da organização não-governamental Oxfam, divulgado no passado dia 9, em Madrid, intitulado “Europa para a maioria, não para as elites”, vem revelar que a Europa está a registar níveis “inaceitáveis” de desigualdade em 2015, com um quarto da população da União Europeia (UE) a viver em risco de pobreza e de exclusão social. De 2009 a 2013 houve um aumento de 7,5 milhões de pessoas na UE em situação de pobreza extrema. Nesse mesmo período, o número de bilionários aumentou de 145 para 222, e continuou a crescer até hoje, para os 342. Já em Janeiro de 2014, a Oxfam divulgava um relatório que mostrava que o património das 85 pessoas mais ricas do mundo equivale às posses de metade da população mundial. Curiosamente, na mesma altura, a Universidade Católica Portuguesa e o Instituto Luso-Ilírico para o Desenvolvimento Humano, apresentaram um estudo que revela que os portugueses com mais habilitações e mais rendimentos são os que dão menos importância à solidariedade, à justiça e aos valores democráticos, comportamento que atinge 46.7% entre os que ganham mais de 4 mil euros por mês.
Na génese do agravamento das desigualdades está a perda de postos de trabalho, corte de salários e serviços públicos em vários países, como Portugal. O aumento de pobres e também dos bilionários é o resultado que o estudo da Oxfam classifica de “injustiça inaceitável”. O estudo denunciou ainda a “excessiva influência” que exercem os grandes grupos económicos e de interesse no seio da UE. Em 2014, 82% dos participantes dos grupos de peritos em matéria fiscal da Comissão Europeia representavam interesses privados ou comerciais.
Alberto Castro, num artigo de opinião no JN, em 07.10.2014, aborda a desigualdade na distribuição da riqueza, com base nas análises do economista francês Thomas Piketty, no seu livro “ O capital no século XXI”, onde este constata que o movimento de concentração da riqueza tende a acentuar-se, face ao actual quadro de globalização, sistemas de financiamento e poder nas empresas. A questão da (des)igualdade é polémica e muitos consideram que tudo se centra no objectivo mítico da igualdade de oportunidades. “Mas a desigualdade é, no essencial, uma questão moral e política, e que a partir de um patamar, se torna igualmente uma questão económica, o que é reconhecido por instituições insuspeitas de serem de esquerda como, por exemplo, pelo FMI ”. Justificam-se, assim, as políticas de apoio aos mais carenciados ao nível do emprego, da educação, mas também do seu rendimento, nomeadamente através do aumento do salário mínimo.
À escala global, recordo Franco Cazzola (in “O Que Resta da Esquerda”, 2011), sobre a falência dos partidos de esquerda, perante a falta de intervenção mais determinante no combate às desigualdades sociais, citando como exemplo o desequilibro remuneratório nas empresas: “Há 30 anos o gestor americano mais bem pago ganhava 90 vezes o salário do funcionário médio. Hoje ganha 400 a 600 vezes mais”.
Por cá, a coligação no governo tem dado uma ajuda ao agravamento das desigualdades com as políticas de austeridade, por vezes, além da troika. Ao nível da política externa, a recente abolição do poder judicial pelo presidente Obiang na Guiné Equatorial, país acabado de entrar na CPLP, com a condescendência dos nossos representantes, Passos Coelho e Cavaco Silva, é, também, de alguma forma, exemplo da fraqueza do nosso governo em matéria de combate às tiranias económicas e às desumanidades de alguns estados.
No actual quadro das migrações, a solidariedade à integração dos refugiados de zonas de guerra, é um imperativo, mas um esforço que o nosso governo timidamente se prestou a dar, mas que agora amplia, porque a sensatez e os exemplos de Angela Merkel e do Papa terão condicionado o desnorte de Bruxelas, que finalmente começa agora a concertar uma intervenção de apoio aos refugiados.
No combate às desigualdades e á exclusão social, a solidariedade dos contribuintes é possível, como diz a experiência, desde que estes percebam como, e em que são gastos os seus impostos, sendo dispensáveis os argumentos malabaristas, como os utilizados por Passos Coelho no passado debate com António Costa, a propósito do descalabro do BES e o consequente esforço financeiro a exigir dos contribuintes. Como alguém diz: “Na política pública, a transparência é essencial”
O anterior primeiro-ministro está preso. O actual anda à solta. Completamente à solta, e sem travões no descaramento. Não há quem o segure, com o cheiro a eleições no ar, é sempre a abrir, sem ponta de vergonha e com o maior dos desplantes. A última é que a desigualdade social diminuiu!
Ninguém imaginaria que o despudor chegasse a tanto. Sem vergonha, e convencido que uma mentira muitas vezes repetida passa a ser verdade, começou a dar gás a esse atentado à seriedade. Ontem foi directamente ao assunto, sem rodeios, e para não deixar passar muito tempo, hoje voltou à carga: "não foi o mexilhão que se lixou"... É preciso ter lata!
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