O direito à propriedade é provavelmente o mais apregoado dos direitos, liberdades e garantias. E é, indiscutivelmente, o que mais alvoroço provoca no quadrante ideológico dominante na sociedade portuguesa.
Rasgam-se vestes a propósito de tudo e de nada que coloque em causa sacrossanto direito à propriedade privada. Mas só quando dá jeito. Só para certos proprietários. Há outros, muitos, para quem o direito de propriedade não é direito nenhum. É meramente acessório face aos interesses de outros.
Sabemos bem quem são uns e outros.
Vimos esta semana nos jornais e nas televisões que o governo autorizou a Savannah a ocupar terrenos privados para exploração de lítio em Boticas. Os interesses da empresa a quem o governo entregou a exploração do lítio atiram para a valeta o direito de propriedade da pobre gente de Boticas. Não vem nos jornais, nem aparece nas televisões, o que a REN - propriedade do Estado chinês - faz do direito de propriedade de centenas, ou milhares, de portugueses que têm o azar de ser proprietários de terrenos florestais atravessados pelas suas linhas de transporte de electricidade.
Simplesmente ignora o direito de propriedade e abate indiscriminadamente, a seu bel-prazer, e sem aviso prévio, tudo o que seja árvore nesses terrenos, reduzindo num momento a nada o investimento de anos e anos dos outros.
Se o inalienável e sagrado direito de propriedade não é uma treta, é areia para nos ser atirada aos olhos. Com força suficiente para nos deixar cegos.
Do processo histórico que se sucedeu ao derrube do regime ditatorial velho de 48 anos, iniciado com o golpe de Estado de 25 de Abril 1974, é parte marcante um período de dois anos que poderemos dar por concluído com as primeiras eleições legislativas, em 25 de Abril de 1976.
Nesse curto período - mas riquíssimo como nenhum outro na História de Portugal - qualquer historiador encontrará sete datas marcantes: 25 de Abril de 1974, naturalmente, 28 de Setembro do mesmo ano, 11 de Março, 25 de Abril e 25 de Novembro de 1975, e 2 e 25 de Abril de 1976.
Se retirarmos, não por critérios de importância, mas apenas de organização de ideias, 25 de Abril de 1975, data das primeiras eleições livres em Portugal, com 97% da participação eleitoral, para eleger a Assembleia Constituinte; 2 de Abril de 1976, data de aprovação da Constituição, e 25 de Abril de 1976, data das primeiras eleições legislativas, restam as quatro que mais associamos a momentos do processo histórico do 25 de Abril: o próprio 25 de Abril, o 28 de Setembro, o 11 de Março e o 25 de Novembro.
Em 25 de Abril de 1974 mudou tudo. Caiu todo um regime, e com ele caiu tudo o que o sustentava, mas também tudo o que ele sustentava. Não sobrou nada. Não é por muitos anos depois termos vindo a perceber que tanta coisa afinal tinha ficado, que deixa de ser verdade que, naquele momento, caiu tudo.
Em 28 de Setembro de 1974 - na segunda (a primeira já tinha levado à queda do I governo Provisório, em 11 de Julho) tentativa de Spínola de tomar conta o regime - caiu o Presidente da República e o governo, o II Provisório.
Em 11 de Março de 1975 - mais uma vez Spínola, desta em explícito golpe militar - mudou muita coisa. Acabou a Junta de Salvação Nacional, substituída pelo Conselho da Revolução. Foram decretadas as nacionalizações (banca, seguros e principais empresas industriais), avançou a reforma agrária, e voltou a mudar o governo. Do III para o IV provisório.
Em 25 de Novembro de 1975 não mudou nada. Foi a única destas datas em que nada mudou!
Com o 11 de Março abriu-se o PREC (Processo Revolucionário em Curso). As nacionalizações, a reforma agrária, as ocupações (de terras, mas também de empresas), e a rua - as manifestações populares - eram a expressão da revolução, em contra-mão com os resultados das eleições constituintes.
Desta contradição surgiu o "Verão quente", em que o país se dividiu perigosamente ao meio. Sedes dos partidos alinhados com o PREC, e em especial do PCP, eram incendiadas por todo o Norte e Centro do país. Mário Soares assumiu a liderança política da oposição ao governo de Vasco Gonçalves, exigindo a sua demissão. Retirou o PS do então do IV governo provisório, levando à sua queda e substituição pelo V, ainda e sempre chefiado por Vasco Gonçalves, já sem PS e PPD (na forma, também sem o PCP), em 8 de Agosto. Utilizou também a "rua", e fez daquele comício da Fonte Luminosa, em 19 de Junho de 1975, que encheu toda a Alameda D. Afonso Henriques, a demonstração que tinha o poder dos votos, mas também o da mobilização popular.
Em 7 de Agosto um grupo de militares do Conselho da Revolução - o grupo dos 9, liderado por Melo Antunes, e que integrava Vasco Lourenço, Pezarat Correia, Franco Charais, Canto e Castro, Costa Neves, Sousa e Castro, Vítor Alves e Vítor Crespo - publicou um documento ("documento dos nove", também chamado "documento Melo Antunes") que rapidamente alcançou amplo apoio militar. Defendia um MFA isento relativamente aos partidos, e a criação de um amplo bloco social de apoio de um projecto nacional de transição para o socialismo. Era a resposta ao Documento "Aliança Povo/MFA", apresentado um mês antes, que acelerava "a via revolucionária".
O amplo consenso militar do "documento dos nove" - e a ampla expressão eleitoral do apoio político que se lhe juntou - teve consequências praticamente imediatas. Em 19 de Setembro Vasco Gonçalves foi demitido e foi empossado o VI Governo Provisório, chefiado por Pinheiro de Azevedo. Depois, Otelo Saraiva de Carvalho foi substituído no Comando da Região Militar de Lisboa por Vasco Lourenço. As restantes já eram comandadas por membros do grupo dos nove.
Na realidade o que havia a mudar, já estava mudado. Em 25 de Novembro de 1975 nada mudou. Emergiu Ramalho Eanes, até aí uma personagem desconhecida, e dir-se-á que não foi pouco.
Mas também na altura não foi muito. É ele próprio queem entrevista escrita ao Soldiz que o seu protagonismo se esgota no clássico aforismo: "O homem é o homem e a sua circunstância". Melo Antunes tinha-lhe pedido para preparar uma operação militar para a eventualidade de - algures no processo - ser necessário algum tipo de intervenção. Nunca foi, como ele próprio conta, com tudo a ser sempre resolvido com civilidade entre Costa Gomes, o Presidente da República, Otelo e Melo Antunes.
Sim, o Jaime Neves saiu com os comandos e os seus chaimites da Amadora, e passeou ali pela Ajuda, em frente ao quartel da Polícia Militar, comandado pelo major Tomé. E houve até um morto. Mas nem Eanes consegue explicar o que se passou.
Pode ser que amanhã, na sessão solene que a direita conseguiu impor na Assembleia da República para assinalar pela primeira vez esta data, alguém o consiga explicar alguma coisa.
Pode ser que alguém lembre a esta gente, amanhã solenemente engalanada, que logo a seguir, apenas quatro meses depois, foi aprovada a Constituição que no artigo 1º enunciava o empenho de Portugal na construção de uma sociedade sem classes, e no 2º vinculava o Estado ao objetivo de assegurar a transição para o socialismo.
O papel de actor principal de Passos Coelho na apresentação daquela coisa menor que não passa de uma colectânea de aberrações a que deram o banal nome de “Identidade e Família”, não tem relação com qualquer espécie de coerência ideológica entre o protagonista e as aberrações. Há uns anos - décadas - Passos Coelho liderou a JSD que, no Parlamento, promoveu e fez avançar, alguma vezes em confronto com a linha oficial do partido, boa parte das iniciativas de progresso civilizacional que agora são objecto das aberrações por que dá a cara.
Tem apenas a ver com oportunismo. O oportunismo a que ontem aqui se referia o último parágrafo, mas ainda o seu oportunismo pessoal. Passos Coelho não é a figura que dele alguns querem fazer, é simplesmente um oportunista. Que o momento do país seja difícil, que as dificuldades do que ainda diz ser o seu partido sejam grandes para assegurar a governação, ou que o foco político devesse estar na apresentação do programa do governo, não lhe interessa nada. Interessa-lhe apenas o que tem a retirar em proveito próprio deste momento. E isso, entende ele, é muito, e serve-lhe de qualquer forma: serve-lhe para o imediato, se o governo cair, na oportunidade de encabeçar uma frente a federar a extrema direita num novo governo; e serve-lhe a curto prazo, na oportunidade da candidatura à Presidência da República.
Não foi por acaso que ele próprio formulou a primeira, e André Ventura a segunda.
Com a bênção do Cardeal Manuel Clemente, assim como de outros membros do clero, será hoje apresentado por Passos Coelho, ao fim da tarde, o livro “Identidade e Família”, um manifesto anti-progressista, que reúne contributos de um conjunto de pessoas da direita mais conservadora, praticamente todas com passagens pelos últimos governos do PSD, ou pelas respectivas bancadas parlamentares de apoio.
Entre os alvos a abater estão a igualdade e a autodeterminação de género, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a procriação medicamente assistida, ou até a legislação que facilita o divórcio; ou mesmo escola pública que, "sequestrada por conteúdos programáticos", "retira o direito de os pais impedirem que os seus filhos sejam submetidos a essa doutrinação”. Tudo na defesa "do humanismo cristão contra o totalitarismo democrático”, e da família como a “única sociedade natural, universal e intemporal”.
Tudo isto poderia não passar de mais uma cena patusca, com ares de folclore. Os subscritores são conhecidos, a Igreja que temos também sabemos o que é, e Passos Coelho é apenas cada vez mais aquilo a que se pode "dar ao luxo" de ser. As teses são frequentemente abstrusas, como se já não fossem famílias - a mesma "sociedade natural" - todas as que vivem e sentem questões de género e de sexualidade. Como se democracia e totalitarismo fossem a mesma coisa, ou o "humanismo cristão" não seja nem humanista nem cristão.
Nesta altura, nesta precisa altura, é muito mais que isso. É o radicalismo ultra-conservador de peito feito, cheio de si.
Movimento Europa e Liberdade é o nome apelativo que foi encontrado, de sigla sugestiva: MEL. É com mel que se apanham moscas. Mel sugere também pote, aquilo a que toda a gente quer deitar a mão.
Apesar do nome apelativo, de sigla fácil e sugestiva, toda a gente prefere chamá-lo de "congresso das direitas". Assim, no plural. Porque há várias, não há uma só direita. Nem com mel conseguem fazer uma única.
Poderia ser esse o objectivo, pelos vistos falhado. É com mel que se apanham moscas, só que as moscas mudam. O resto é que não!
Rui Rio esteve presente pela primeira vez. Era a estrela desejada, com honras de encerramento. Mas o desejado é Passos Coelho, a estrela que brilha sem precisar de ser brilhante. Nem sequer de falar. Porque, lá está ... só as moscas mudam.
Mas Rio acabou a dizer que estava ali, mas que seu partido não é de direita. Ou o que dele resta, e que lhe foge entre os dedos. Não estava lá, pois, pela direita. Só pelo mel. Ou seria pelo pote?
Sim, porque mel, o Chega não tem certamente. Só moscas.
Rui Rio perdeu o pé, e entrou no desespero em que tudo lhe serve desde que dê pata agarrar. Bastou António Costa lançar uns piropos à esquerda para Rio se virar para André Ventura, à procura aconchego. A aconchegar-se.
Rui Rio não percebeu que não estava a agarrar-se ao Chega. Estava a dar -lhe a mão. Não percebeu que André Ventura, e o Chega, podem até estar a crescer muito mas, por muito que cresçam, sozinhos nunca chegam onde pretendem chegar. Que, ao dar-lhe a mão, não se está a agarrar, está a puxá-lo para cima.
André Ventura, mais esperto, sabe que dali não tinha nada a perder. Agarrou a oportunidade que Rio lhe ofereceu de bandeja e, em vez de sair de lá, como desastrada e ingenuamente Rio lhe propusera, chamou-o para lá. E sob ameaça: se não vier, destrói-o.
Em política, como no resto, os erros pagam-se. Rui Rio começa a correr riscos de insolvência...
Bolsonaro está à porta do Palácio do Planalto, mas poderá não ser uma formalidade o que falta para que se lhe abra, daqui a três semanas. Chegou até a parecer que teria entrada directa, que tudo ficaria ontem resolvido, logo na primeira volta. Não ficou, e os 46% de votos que atingiu não são, hoje, mais que um copo meio cheio. E a direita portuguesa do "mas", que aqui trouxe há dias, voltou a fazer-se ouvir. Mais hipocritamente, agora que os resultados são conhecidos.
Que Bolsonaro é um fascista - gostam mais de dizer extrema-direita radical - mas... Que a quase eleição à primeira volta de um candidato de extrema-direita radical mostra que o povo brasileiro está disposto a trocar a liberdade pela segurança. Mas ... ou porque, a verdade é que a insegurança no Brasil atingiu o extremo, e os brasileiros acreditam que só Bolsonaro pode resolver isso.
Sobre os gigantescos interesses da indústria da segurança no Brasil é que nem uma palavra. Sobre o lóbi da segurança, dos carros blindados às armas, é que nada. E sobre de que lado está Bolsonaro nesta "guerra" da segurança, menos ainda... E, da tal troca a liberdade pela segurança, não vem qualquer mas para as redes sociais, e a sua manipulação organizada. Nem para as seitas religiosas. Nem para o bispo Edir Macedo e para a IURD...
As elites da direita portuguesa politicamente correcta assumem-se sempre muito democráticas. Demarcam-se de Trump, de Orban ou de Matteo Salvini ... mas ... sempre com um "mas".
Eles são nacionalistas.. ...mas a economia cresce. Eles são xenófobos ... mas o desemprego desce. Eles são racistas ... mas também não se pode abrir as portas a toda a gente. Ou, normalmente por fim, na última das últimas alegações, eles até poderão nem ser flores que se cheirem ... mas foram eleitos democraticamente.
Sabemos que é assim, vemos coisas destas todos os dias. Mas... o mais refinado dos "mas" surgiu agora com Bolsonaro.
Como lhes fica difícil (permitam-me este apropriado toque brasileiro) defender a criatura, atacam-lhe o ataque. Então transformam as gigantescas manifestações deste fim-de-semana do "ele não" num erro estratégico, nem que, para isso, tenham de recorrer a raciocínios "non sense" e a comparações espatafúrdias.
Não há volta a dar. O "mas" está-lhes na massa do sangue!
Acabada a última aula, o professor regressou presidente para acabar de vez com a novela da recondução de Joana Marques Vidal. Explicou que era do entendimento que o mandato do Procurador Geral da República deveria ser único, como, de resto, era mais ou menos consensual no meio, e nomeou Lucília Gago, em contra-mão com o CDS e com o PSD, ou com o que dele resta, já que para o seu líder tudo o que viesse estaria bem.
Ora aqui está uma derrota política da direita, sem qualquer sombra de dúvida. Nunca percebi por que é que a continuidade de Joana Marques Vidal era uma questão de direita e esquerda. Continuo convencido que não é, mas a verdade é que a direita fez dela a sua casa. E tendo chamado a si a causa, perdendo-a, perdeu.
Mas não perdeu apenas aí. Perdeu, e aí com estrondo, quando apostou tudo nesta carta para abrir fracturas no entendimento reinante entre o primeiro-ministro e o presidente da república. E perdeu, finalmente e com não menos estrondo, quando, hoje, a única reacção negativa à nomeação é assinada por Passos Coelho, numa carta de despedida à ainda PGR publicada no Observador. Se calhar, quem menos se deveria ter metido nisso...
As propostas para a despenalização da eutanásia não passaram na Assembleia da República. Por pouco, mas não passaram. Como seria por também pouco, se eventualmente tivessem passado o que, como aqui ontem se dizia, iria dar no mesmo. Talvez da próxima!
Que sociedade portuguesa se divida ao meio sobre a matéria não é grande surpresa. Estas questões, ditas fracturantes, são mesmo assim. O que poderá supreender são os diferentes alinhamentos perfilados, e mais ainda se tivermos em atenção a violência que chega a ser utilizada no debate.
Como se viu são alinhamentos exteriores à dicotomia direita/esquerda. Há muita gente de direita que é a favor da despenalização da eutanásia, embora sejam poucos, muito poucos, residuais mesmo, os de esquerda que sejam contra. A questão do PCP - e já agora uma saudação ao PEV, que pela primeira vez fez jus à sua presença no Parlamento - é outra. É outra coisa, já lá vamos.
Se procurarmos na dicotomia conservadores/liberais também encontramos dificuldades. Não que não percebamos de imediato que os (mais) conservadores estão contra, com poucas excepções. Mas porque lá, contra, encontramos também os mais assanhados liberais, os do tudo pela liberdade individual, do tudo pelo indivíduo e nada pelo Estado, que não tem nada que se meter na vida de ninguém.
O PCP é outra coisa porque nunca a liberdade individual foi bandeira sua, e é hoje provavelmente o partido mais conservador do nosso quadro partidário. E porque provavelmente acredita no rendimento eleitoral desta sua posição, num eleitorado envelhecido. É curioso notar que o PCP não esteve ao lado do CDS apenas na votação. Esteve ao lado do CDS também ao nível do debate. Rasteiro, básico e manipulador...
Ah... A primeira página do "i" é só porque sim... Porque nisto de capas não são nada maus!
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