O país está à beira da anunciada greve dos motoristas dos transportes de mercadorias, que deveria replicar, com mais impacto ainda, a do passado mês de Abril. Pelo que se vai percebendo é muito baixa a probabilidade de ser evitada...
As greves são sempre impopulares, mas esta é-o ainda mais, como toda a gente percebe. Destinam-se a fazer valer reivindicações e, como tal, quanto mais impacto tiverem maior é o seu poder reivindicativo. Quando uma greve não provocar danos, ou não produzir desconforto, deixa de fazer sentido.
Acresce que, formalmente, ninguém questiona o direito à greve. É tido por direito fundamental dos trabalhadores, e a greve a principal arma de que dispõem quando os conflitos esgotaram as vias do diálogo e da negociação. O seu uso, como o de qualquer arma, poderá ser desproporcional.
É o que se diz desta que aí vem, convocada por sindicatos que saem fora do sindicalismo clássico, dito orgânico, de aqui falei há bem pouco tempo.
Como se esta greve não fosse já suficientemente impopular, o poder político tratou de lhe agravar a escala, fazendo-a passar de impopular a intolerável. Tratou, de resto, de fazer o mesmo do que foram acusados os promotores da greve: usar a proximidade das eleições.
Fazer frente a uma greve impopular é, obviamente - até por definição - popular. Em cima das eleições tudo o que seja popular é ouro. É oportunidade imperdível.
Por isso o governo deitou fora qualquer tipo de pudor e, em jeito de início de conversa, tratou de transformar serviços mínimos em praticamente serviços máximos, abafando por completo um direito que continua a dar por fundamental e sagrado. E vamos ver o que ainda falta ver…
Por cima de toda esta hipocrisia lá vem o velho ditado: “quem com ferros mata, com ferros morre”. Uma greve que quis matar com a proximidade das eleições, acabará morta pela proximidade das eleições.
As condições de trabalho e os salários destes trabalhadores, parte integrante da fileira de um dos mais produtivos e rentáveis sectores da economia nacional, que gera e distribui milhões por todo o lado, e em especial pelo Estado, e a forma como aqui se chegou, é outra coisa. E fica para a próxima.
Nos últimos anos temos conquistado uma série de novos direitos. Ou novas regras e novas roupagens em velhos direitos. Novos direitos, ou simplesmente novas formulações de velhos direitos, - a diferença não tem qualquer relevância para o caso – a verdade é que têm sido implementadas novidades no nosso quotidiano que nos deixam uma sensação de protecção. De, enquanto cidadãos e consumidores, enquanto elo mais fraco das diversas cadeias que integramos na nossa pacata vida comum do dia-a-dia, nos sentirmos mais protegidos no confronto sempre desigual com as grandes organizações com que temos todos os dias de lidar.
Aqui há uns anos a legislação obrigou os bancos, e de um modo geral as empresas do negócio financeiro, a especificarem tudo nos contratos – taxa de juro, despesas, valor total do desembolso… Tudinho, supostamente para que o cidadão/consumidor tomasse consciência de tudo o que iria pagar.
Toda a gente sabe que nada disso altera nada nessa relação desigual entre quem tem o dinheiro para satisfazer o consumo e o consumidor sem dinheiro que não resiste ao ímpeto de consumir. Mesmo assim, logo bancos e sociedades financeiras lhe deram a forma de letra miudinha, daquelas que ninguém lê, que já conhecíamos das seguradoras, porventura os mais antigos malfeitores. Engraçada foi a maneira encontrada para a comunicação oral, na publicidade na rádio e na televisão, onde a letra miudinha foi convertida na leitura dessa parte do conteúdo a uma velocidade estonteante, que torna completamente imperceptível o que está a ser lido.
Engraçada também é a legitimação da coisa manhosa: o tempo em publicidade é demasiado caro para ser gasto com mensagens laterais, e ainda apor cima obrigatórias.
Também já percebemos como funciona a legislação sobre a protecção de dados, em vigor desde Junho passado. Melhor, como não funciona. Porque, lá está outra vez, a desigualdade em confronto.
Nos contratos escritos, lá regressa a velha fórmula das letras pequeninas em páginas e páginas que ninguém consegue ler. Mas com que tem de se concordar. Nas plataformas, ou nas diferentes apps que agora há para tudo e para nada, é a mesma coisa. Mas pior - enquanto não concordar não sai do mesmo sítio. A cada click na internet temos invariavelmente que autorizar tudo o que nos põem à frente, e ceder em toda a nossa privacidade a troco de coisa nenhuma … É simples: ou desistimos do que procuramos, ou fintamos as barreiras todas que nos põem à frente para lá chegar. Não há terceira via, ler aquilo tudo para decidirmos se aceitamos ou não, nunca é alternativa. Simplesmente ninguém tem tempo para isso e, se tiver, quando acabar já nem se lembra exactamente do que estava à procura.
Pois é. Alegremente convencidos que estamos cada vez mais protegidos, estamos afinal cada vez mais entregues à bicharada!
* Da minha crónica de hoje na Cister FM
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