O Tribunal Constitucional recusou-se a validar a pantominice dos partidos, e mandou repetir a votação no círculo da Europa, em que mais de 157 mil votos acabaram considerados nulos pela mistura dos votos legalmente expressos (bem ou mal, mas é a lei que é, e essa obriga à cópia do cartão de cidadão para validar o voto) com os outros, a que faltava o cartão de cidadão.
Não é. Se, pelo contrário, não for a democracia a não funcionar é, pelo menos, a democracia a funcionar mal.
Depois desta enorme falta de respeito pelos que vivem e trabalham lá fora, para onde na maioria dos casos foram empurrados, quantos emigrantes irão agora votar?
Aí está mais um momento decisivo no processo de normalização do Chega, com André Ventura a reclamar a vice-presidência da Assembleia da República. Inevitavelmente, porque não conhece outro método, usa a chantagem deforma despudorada - se a Assembleia da República não votar a eleição do seu deputado, o Chega crescerá ainda mais!
A chantagem de André Ventura é todo um manual de paradoxo anti-democrático. Por ser chantagem, mas pelo que está por trás dela. É uma ameaça que reconhece e explicita a própria ameaça que o partido representa para a democracia. O que Ventura diz é simplesmente isto: nós somos uma ameaça à democracia, e se nos dificultarem a ameaça tornar-nos-emos ainda uma ameaça maior!
A expressão eleitoral que o Chega atingiu ao tornar-se na terceira força política representada na Assembleia da República torna-o numa espécie de cavalo de Troia no Parlamento. À democracia compete denunciá-lo, dizer claramente o que está dentro da barriga daquele cavalo de madeira, e enfrentá-lo.
A legitimidade democrática dos deputados eleitos pelo Chega não pode ser posta em causa. A sua participação é tão legítima quanto a de qualquer outro deputado. Essa é a grande superioridade da democracia, permitir expressão e participação aos que a combatem. Reconhecer direitos àqueles que não os reconhecem aos outros.
Isso, a sua legitimidade como deputados, igual à de quaisquer outros, é uma coisa. Outra, completamente diferente, é normalizar o Chega. É dizer que é um partido como qualquer outro, quando não é. É contra tudo o que são os pilares do regime e os fundamentos da democracia. Permitir-lhe assumir a presidência do plenário da Assembleia da República, bem como de qualquer comissão parlamentar, é eliminar todas as barreiras sanitárias da democracia.
A Assembleia da República é que elege os seus órgãos: o presidente, os quatro vice-presidentes, e os presidentes das diferentes comissões parlamentares. Os eleitores apenas elegeram os deputados. São eles, depois, que irão eleger estes órgãos. O Presidente da AR é proposto pelo partido mais votado. Mas tem de ser eleito, e nem sempre o foi, como aconteceu com Fernando Nobre, em 2011. Os quatro vice-presidentes são propostos pelos quatro partidos mais votados. Mas terão que ser eleitos pelos deputados, numa legitimidade tão democrática como a que a ditou a sua própria eleição.
Por toda a Europa, e inclusivamente no Parlamento Europeu, os parlamentos têm democratica e sistematicamente impedido a eleição dos candidatos propostos pelos partidos da extrema direita. Em Portugal, agora, apenas tem de se fazer exactamente o mesmo. Sem medo. O medo é atributo dos regimes autoritários, em democracia não há lugar para o medo!
É este o primeiro grande desafio da nova Assembleia da República. Se, na sua nova constituição, não for capaz de dar uma resposta clara ao medo e à chantagem, a democracia - essa sim - treme. Uma resposta clara é uma resposta clara, não é de meias tintas. E só é clara se todos os restantes partidos, sem excepção, votarem contra a eleição do deputado Diogo Pacheco de Amorim - o escolhido de André Ventura - para vice-presidente da Assembleia da República.
A abstenção caiu, nas legislativas de anteontem, pela primeira vez desde que há eleições democráticas em Portugal. Tinha vindo sempre a subir desde as primeiras eleições, em 1975, tendo atingido o seu máximo (51.4%) em 2019, depois dos dos 44% de 2015. Foi ainda a terceira maior de sempre, mas caiu para 42% - perto dos 10 pontos percentuais.
Levantam-se sempre muitas dúvidas sobre os números da abstenção, que se admitem sempre inflacionados pela hoje absolutamente incompreensível desactualização dos cadernos eleitorais. Mas, como em comparação estão números obtidos nas mesmas condições dos cadernos eleitorais, a objectividade desta queda na abstenção não é passível de contestação. Acresce ainda que esta queda acontece em contexto de pandemia - e num dos seus picos - e com mais 250 mil novos eleitores inscritos, o que valoriza ainda mais este resultado.
Alguns dirão que esta inversão se deve ao alargamento da oferta partidária. Que mais opções de escolha leva mais gente a votar. No entanto as opções que agora foram a votos já tinham estado disponíveis nas últimas legislativas, há pouco mais de dois anos. E é pouco provável que um súbito ímpeto cívico tenha chegado à sociedade portuguesa e motivado os portugueses para uma maior participação eleitoral.
A que se deverá então esta saudável inversão do abstencionismo?
Não tenho resposta. Mas coloco uma hipótese: o negócio das televisões!
As televisões descobriram que o espectáculo político também poderia gerar audiências, e socorreram-se da experiência do futebol. Se o futebol rendia, porque não replicar-lhe a fórmula de sucesso?
Os debates televisivos, outrora maçadores e desmobilizadores, foram o balão de ensaio. Introduziram-lhe o "pré-match", as "flash interview" e, depois, os infindáveis debates de comentário servidos pelas "cartilhas" dos "clubes", cada uma defendendo a sua turba. As sondagens, e especialmente essa coisa do "tracking poll" acrescentaram o sal e a pimenta à receita. E resultou em sucesso, exactamente como no futebol.
Talvez tenha sido isso - a futebolização da política - a contribuir para a descida da abstenção. Não é o mais nobre, nem talvez o melhor caminho ...
A surpreendente - absolutamente inesperada - maioria absoluta do PS nas eleições de ontem prova como as narrativas, em política como em muitos outros aspectos da vida, podem ganhar vida própria, com a criatura a sobrepor-se ao criador.
A estratégica de António Costa resultou em pleno. Nem tudo correu como era suposto, mas também não fugiu muito disso. Apenas pareceu que fugira, em determinados momentos. Especialmente quando o PSD reagiu a antecipar os seu calendário interno, e Rui Rio pareceu ganhar um novo fôlego e sugerir uma dinâmica de vitória.
A maioria social de esquerda é estrutural na sociedade portuguesa. Não é fácil de alterar. Por isso Costa sabia que só tinha de ir "roubar votos" à sua esquerda, para o que lhe bastaria explorar a narrativa criada sobre o chumbo do orçamento, contando com toda a máquina do main stream.
Este era guião, o resto teria de ser ajustado no percurso. Aí começou por fazer de "maioria absoluta" expressão proíbida, para depois a tornar palavra chave. Pareceu não correr bem, e introduziu o diálogo. Com todos, excepto com aquele que era óbvio. Tanto ziguezague poderia correr mal, mas a chegada do empate técnico às sondagens resolveu o problema.
Diz-se que as sondagens falham. Não é verdade. As sondagens são a fotografia de cada momento. E no momento de depositar o seu voto muitos eleitores de esquerda, perante o espectro do empate técnico que, ou abria perspectivas da reedição da fórmula parlamentar da geringonça, inviável por tanta diabolização, ou abria um horizonte à direita, evidentemente com o Chega como protagonista, entenderam votar pelo seguro - o voto útil no PS. Que arrecadou mais 380 mil votos, 350 mil dos quais perdidos pela CDU e pelo Bloco. O PAN perdeu ainda 85 mil votos, bem mais que os 30 mil que compõem os ganhos dos socialistas que sobraram da conquista à esquerda.
A abstenção caiu significativamente, e isso saúda-se. Parece ter sido a direita que mais ganhou com a redução da abstenção, o que também não surpreende. Na realidade nada é mais surpreendente que a maioria absoluta, dada como uma impossibilidade para qualquer partido isolado por todos os analistas, e apenas explicada pela dinâmica do voto útil.
Poderá ser-se levado a admitir que tudo mudou no xadrez político nacional. Não terá sido bem assim, e provavelmente só a morte política do CDS, de resto sobejamente anunciada, e sem exagero, tem contornos decisivos. O Chega, preocupantemente como terceiro partido, é certo, dificilmente deixará de constituir o epifenómeno que efectivamente é. Ao contrário da Iniciativa Liberal que, com os quadros que já tem, e com os que irá buscar às cinzas do CDS, mas também a um PSD que continuará à espera de um Messias, tem tudo para continuar a crescer.
A esquerda do PS tinha o destino destas eleições traçado. Só que foi mais cruel do que o que esperaria. O Bloco foi o grande derrotado destas eleições, mas sabe-se que foi derrotado pelo voto útil. E o voto útil são votos emprestados, são resgatáveis. Mas é preciso fazer por isso, e esse é o desafio que o Bloco tem agora entre mãos. O PC é menos vulnerável ao voto útil, e não terá sequer essa miragem de resgate, pelo que terá de se enquadrar esta derrota no cenário de perda constante de eleitorado. Para já ficou sem o PEV, o partido parasita que nunca teve vida própria. Não virá agora a tê-la, certamente.
O PAN e o Livre são agora os dois partidos de um deputado só. O PAN perdeu, mais deputados ainda que votos, sem surpresa. O que trouxe de novidade, não conseguiu segurar. Não tem substância para mais. E o Livre .... é Rui Tavares. E esse merece ser deputado!
Os portugueses não gostam de maiorias absolutas .... mas com óleo de fígado de bacalhau, engolem-nas.
Os mais novos não saberão o que é o óleo de fígado de bacalhau, era coisa dos meus tempos de meninice. Nunca me calhou, mas sei que era uma coisa intragável que nesses tempos se obrigava os miúdos a meter pela goela abaixo para lhes abrir o apetite. Não sei se abria, mas bastava os miúdos ouvirem falar dele para engolirem a sopa de uma só vez.
Depois veio o papão. Mas não tinha o mesmo efeito, os miúdos começaram a perceber que não vinha papão nenhum se não comessem a sopa. Já aquela xaropada existia mesmo, e era horrível enfiada pela boca dentro.
O empate técnico das sondagens foi o óleo de fígado de bacalhau servido aos portugueses para correrem a engolir esta maioria absoluta. Ninguém imaginaria que tantas gerações depois ainda funcionasse. António Costa, que ainda é do tempo dessa xaropada intragável, preferiu recorrer ao papão. As sondagens trataram de lhe dizer que a "estória" do papão não funcionava. Que óleo de fígado de bacalhau é que dava. E que o Fernando Medina até devia ter um frasco daquilo ainda dentro da validade.
O PS começa por cima, e António Costa fala em maioria absoluta ... O PS começa a descer por aí abaixo. O PSD passa para cima, e Rui Rio pede de imediato a António Costa que assuma a derrota com dignidade. E logo o PS volta para cima...
Portugal tem um indesmentível e complexo problema de crescimento económico. Hoje tão iniludível que foi finalmente trazido para o debate eleitoral, nesta campanha. Se não se pode dizer que seja transversal a toda a campanha, menos se poderá dizer que tenha sido trazido em toda a sua plenitude. E, menos ainda, em modo de debate sério
Portugal tem vários problemas estruturais que confluem no problema do crescimento, como uma vasta rede de afluentes a desaguar no rio. Olhar para o estado do rio sem ver o que vem dos afluentes a montante é não querer perceber nada. E o que se não quer perceber, não se quer resolver.
É verdade que o tema veio para a campanha pela mão da direita, e em particular pela da Iniciativa Liberal, que dele faz prato principal. Daí passou para a agenda do PSD. A esquerda, mal, pouco mais fez que ignorá-lo, e deixou a direita sozinha a tratar do assunto da forma que entendeu. Com um mau diagnóstico, a receita nunca poderia ser mais que banha da cobra.
O diagnóstico partiu da comparação do crescimento dos países de leste, do lado de lá da antiga cortina de ferro, com o de Portugal. Não é por acaso, é um diagnóstico propositadamente enviesado para apontar ao fim político. Ignora que todos os países crescem mais nos primeiros 15 a 20 anos da adesão à Comunidade Europeia, por razões tão óbvias, que me dispenso de enumerar. Ignora as qualificações desses países à partida. Ignora o grau de especialização industrial da sua maioria. E ignora a sua centralidade geográfica e, em particular, as paredes meias com as maiores e mais desenvolvidas economias da União.
Ignora tudo isto para relevar as suas políticas liberais. De liberalismo.económico, evidentemente. Porque os outros não lhe importam. Os meios não devem justificar os fins, mas é campanha eleitoral... Temos de ser condescendentes.
O problema é a receita. Nessa já não pode haver condescendência. E a receita, adiantada por Cotrim de Figueiredo e logo apadrinhada por Rui Rio, é baixar o IRC. É simples: baixa-se o IRC e a economia desata a crescer!
Um vendedor de banha da cobra não faria pior. Mas esse nem disputa eleições nem se propõe a fazer crescer o país. Fica-se pelas dores de barriga e afins...
Escrevi aqui há dias sobre a inversão na tendência das sondagens, para responsabilizar a mal disfarçada obsessão de António Costa pela maioria absoluta por esse rumo. O rumo das sondagens indicava então a erosão da vantagem do PS sobre o PSD, confirmando a miragem da maioria absoluta.
Poucos dias depois estamos a ver passar para a opinião pública uma outra coisa completamente diferente. O que a partir do fim de semana vemos é dizer-se que o PSD já está à frente nas intenções de voto, e que a direita irá ser maioritária na Assembleia da República. É uma mudança brusca de mais para não nos levar a torcer o nariz. Há aqui qualquer coisa que não joga bem, a começar pelos números. Nos números que são soltados, com o PS a descer e o PSD a subir, o resultado da soma de ambos desce. Pode acontecer, mas não é normal!
O que está a acontecer é outra coisa. O que está a acontecer é que deixamos de seguir sondagens para passarmos a seguir essa coisa do tracking poll, que a CNN Portugal - é cada vez mais evidente que, de CNN, só tem a taxa de franchising - nos oferece, com um universo de 180 eleitores. Fazer da consulta de 180 pessoas uma sondagem não é sério.
Mas temos que levar a sério. Porque é uma manipulação grosseira dos eleitores, e porque resulta. E o jornalismo, em vez de denunciar, segue na festa. E faz parte dela!
O PS, que há poucos dias tinha nas sondagens uma vantagem de 10 pontos percentuais sobre o PSD, tem agora, na última, de ontem mesmo, apenas quatro. Tecnicamente, tendo em conta a margem de erro, significa empate.
Não há volta a dar. Pode especular-se sobre muitas razões, mas a única objectiva é a introdução sa maioria absoluta no discurso de António Costa. Os debates não correram assim tão bem a Rui Rio, nem assim tão mal a Costa. O desgaste deste não acelerou assim tanto nos últimos dias, como não acelerou assim tanto o élan de Rio. A pandemia acelerou, mas também já passou por drama maior, apesar de tudo.
E poderíamos continuar a desfilar razões de pormenor para procurar justificação para tão pronunciada inversão da tendência das sondagens. Não me parece que encontremos explicação para, de um resultado à beira da maioria absoluta, o PS cair para um que coloca em causa a simples vitória eleitoral, que não a menção clara e inequívoca à própria maioria absoluta.
"Os portugueses não gostam de maiorias absolutas" - era a convicção de António Costa. Em 2019, nestas mesmas circunstância de campanha eleitoral, afirmava, alto e bom som: "Eu não tenho dúvidas nenhumas que os portugueses não gostam de maiorias absolutas e têm más memórias das maiorias absolutas, seja do PSD, seja do PS".
Porquê, então, este tiro no pé?
Porque não tem memória, e julga que os portugueses também a perderam? Porque a soberba lhe toldou a razão? Por desrespeito a si próprio e aos eleitores?
Não creio, mesmo que qualquer desta hipóteses não possam, de todo, ser descartadas. Creio que é simplesmente o subconsciente a funcionar. Como Freud demonstrou nos ensinou, o subconsciente é uma zona intermédia do nosso processo psíquico, onde armazenamos tudo o que a consciência não aceita.
Conscientemente podemos mentir, e omitir. Mas o subconsciente não mente, tem sempre a verdade para mostrar!
Por muita má memória que tenhamos, e por muita lavagem cerebral que tenha sido feita, lembramo-nos bem de como a geringonça foi dinamitada. Lembramo-nos bem da inflexibilidade de Costa em todo o processo do Orçamento, o mesmo que agora mostra triunfalmente para as câmaras de televisão. Lembramo-nos daquele tempo. Tempo de PRR, e tempo de definhamento na oposição de direita, com o CDS em passo acelerado para a implosão, e com o PSD em guerra aberta e Rui Rio pelas ruas da amargura. O notório crescimento da extrema direita era só mais uma peça favorável do puzzle. Só ajudava.
Lembramo-nos que foi assim, por muito que toda a gente nos tenha vindo a dizer outra coisa. Foi com este cenário que Costa contou as favas contadas. Para completar o cenário perfeito bastava-lhe acusar os seus antigos parceiros de geringonça pela responsabilidade da crise política, e isso não lhe colocava qualquer dificuldade.
A estratégia parecia não ter por onde falhar. Mas tinha. Ele só tinha controlo sobre a parte que lhe cabia, a demonização da geringonça. A crise nos dois partidos à sua direita não estava nas suas mãos. E escapou-lhe, apesar da ajuda do líder do CDS!
Tudo arrumado no subconsciente. Até que, logo após o debate com Rui Rio, na flash interview, com o consciente a constatar que não tinha corrido lá muito bem, o subconsciente emergiu. Com a verdade, como sempre.
Confesso que não tive paciência para assistir até ao fim ao debate entre os partidos que não têm representação parlamentar. Ainda nem sequer acabou... Foi demasiado deprimente, e difícil de tolerar para aguentar até ao fim.
E chocante. Especialmente chocante, para além de deprimente, como praticamente todas, a participação de um senhor chamado Bruno Fialho, de um partido chamado ADN. A do velho conhecido Manuel Pinto Coelho - do PNR, agora Ergue-te - já nem choca, apenas dá vomitos.
Mas o que mais me chocou, o embate mais surpreendente e violento, foi o estado a que o MRPP chegou. Ainda estou sem palavras. Acredito que a rapaziada da minha idade me compreenda. Se calhar já só a minha geração se lembra do MRPP....
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