Sabemos como Putin interferiu na eleição de Trump, há quatro anos. Sabemos que criou a IRA, uma agência de espionagem para interferir nas redes sociais, criar sites de notícias falsas e veículos de circulação de fake news e desinformação. Sabemos - divulga-o, mesmo a sério, o New York Times - que continua a fazê-lo na campanha eleitoral em curso.
E sabemos como são essas as àguas de Trump, que consegue mentir descaradamente sem qualquer espécie de dificuldade, com performances verdadeiramente impressionantes: em cada dez afirmações que faz, oito ou são completamente falsas, ou contêm falsidades pelo meio, ou partem de premissas falsas.
Sabemos como foi também assim com Bolsonaro, no Brasil. E que é assim, de uma forma geral, que a extrema-direita vem fazendo o seu caminho pelo mundo fora. Também cá, em Portugal.
Os exemplos engrossam diariamente, e cada vez mais grosseiros. Já nem sequer têm mínimas preocupações de credibilidade, as mentiras mais incríveis passam da mesma forma, já que não há qualquer tipo de crivo. Ainda há poucos dias foi a notícia de que um vídeo alusivo às festas de Nossa Senhora da Agonia teria sido proibido por alegadas denúncias de racismo. Não fazia o menor sentido, e o vídeo fora apenas retirado do facebook por questões de propriedade, de direitos de autor. Mas logo alguém ali viu a oportunidade para encher as redes sociais de ataques ao movimento anti-racista, com o conhecido eurodeputado Nuno Melo a correr para o Twitter a soltar os cães.
Ontem a SIC deu-nos mais um exemplo de como o "Jornalismo" desactivou todos os filtros e corre atrás da primeira coisa que lhe ponham à frente.
No Jornal da Noite, apresentado por Clara de Sousa, a SIC seguiu uma montagem que falseava uma primeira página do New York Times que dramatizava como um suicídio colectivo a festa do Avante. A própria jornalista, no decurso do mesmo programa, faria o desmentido e apresentaria desculpas. Nada que no entanto impedisse Rui Rio de usar a mesma notícia falsa para lançar na televisões o alarme do efeito internacional do assunto mais importante deste Verão para a direita.
É assim que as coisas estão a acontecer. Primeiro lança-se a mentira, depois dá-se-lhe gás e propaga-se à velocidade da luz. E depois, as instituições que lá deveriam estar para as travar, limitam-se a correr atrás delas...
A The Atlantic, a velha revista de Boston, que já vem do início da segunda metade século XIX, divulgava por estes dias uma sondagem que revela que cerca de um terço (31%) dos americanos estão convictos de que o vírus foi criado pela China como poderosa arma química. Os mesmos - muito provavelmente mesmo os mesmos - mas a mesma percentagem dos que acreditam que o SARS-CoV-2 é muito menos perigoso do que se diz, e que o seu grau de ameaça está a ser deliberadamente exagerado para prejudicar a reeleição de Donald Trump.
Há dois meses, logo na fase inicial deste susto que o mundo está a viver, procurando coisas positivas que as portas abertas da pandemia poderiam deixar à vista, escrevi aqui que "bastaram os primeiros dias desta crise" para ver a ignorância e a incompetência deTrump e Bolsonaro. Para que "toda a gente pode facilmente comparar tudo o que estes dois fizeram e disseram deste vírus... o que têm vindo a fazer e a dizer do ambiente, tão só a maior emergência da humanidade. E concluir que não passam de dois idiotas".
É verdade que muita gente percebeu a sua verdadeira incompetência política, e a dimensão da mentira a que dão corpo, e arrependeu-se de lhes ter dado o voto. Mas isso não os enfraqueceu. Pelo contrário.
Os meios e as técnicas que os levaram ao poder não são - não foram - meros instrumentos de conquista de poder. São armas poderosíssimas de que não abrem mão e que, em tempos como estes, de limitação e condicionamento das liberdades individuais e de devastação económica e social, a partir do poder, se tornam mais poderosas ainda. Teorias da conspiração, manipulação da informação e propagação da mentira (fake news) circulam hoje pelo mundo sem barreiras da internet à velocidade da luz. E com elas, à mesma velocidade e da mesmíssima forma, poderosos meios de recrutamento e mobilização de adeptos fanáticos transformados em exércitos dispostos a quebrar todas as convenções e a desafiar todas as instituições. E com armas nas mãos.
Não. Trump não se limita a mentir, a manipular, ou a condicionar. Acossado, o que Trump está a criar na América é uma rede de terrorismo interno que, do ponto de vista de concepção política, não se afasta muito das redes do terrorismo internacional.
Não é novidade, já toda a gente o sabe, que a extrema-direita populista, xenófoba e racista utiliza como ninguém as redes sociais para dolosamente veicular notícias falsas, de que criminosamente pretende tirar proveito. Aconteceu assim em Inglaterra, nos Estados Unidos e no Brasil. E acontece assim por toda a União Europeia.
Em Portugal, essa extrema-direita, mesmo que continue - felizmente - sem conseguir passar da mínima expressão, sabe que é isso que se faz. Mas são tão grunhos que nem isso sabem fazer. Nem sabem apertar a máscara, que acaba por cair de imediato. Sem noção do ridículo...
O PNR criou perfis falsos de inventados militantes negros do Bloco de Esquerda para tentar justificar a sua utilidade política. Não se quis dar a grande trabalho, e utilizou a fotografia que tinha mais à mão, que por acaso era do cantor angolano C4 Pedro. E acabou por não conseguir mais que demonstrar a sua inutilidade, já que a sua falta de inteligência, essa, há muito que está provada.
Sabemos como as notícias falsas, agora conhecidas por “fake news”, têm marcado a ascensão do populismo e como se têm constituído em arma eleitoral decisiva.
Foi assim com o Brexit, com a eleição de Trump na América, ou com a de Bolsonaro no Brasil.
Na Europa teme-se o que possa acontecer nas próximas eleições para o Parlamento Europeu, tendo as diversas instituições europeias dado já sinal do sério risco destas eleições serem contaminadas por “fake news”. E os gigantes digitais, particularmente Facebook, Google e Whatsapp, têm prometido todos os esforços para as expulsar das suas plataformas.
Antes da vaga digital ter tomado conta do mundo chamavam-se simplesmente boatos. Se já eram difíceis de controlar e de contrariar na altura, agora, com a velocidade e o alcance das redes sociais é de todo impossível.
Por mais centros de controlo que estes gigantes digitais anunciem, ou por mais modelos de validação de notícias que sejam testados, não é fácil acabar, ou sequer limitar os danos, dos boatos. O maior obstáculo ao seu desenvolvimento tem obviamente de vir do jornalismo, na sua nobre e insubstituível função de intermediar no circuito da informação que leva a notícia até ao público.
Cumpra o jornalismo a sua função, e mais curta será a perna do boato e da mentira.
O problema maior está aqui. O que o jornalismo tem vindo a mostrar é que, em vez de obedecer aos princípios por que tem de se reger, e assim se opor às “fake news”, obedece a lógicas insondáveis e replica-as.
Temos quase todos os dias exemplos disso. Ainda ontem, na simples notícia da morte do actor Amadeo Caronho, menos conhecido do grande público, um qualquer jornalista limitou-se a “googlar”. Foi enganado pelo Dr Google, que lhe deu fotografias e a biografia de um outro actor, mais conhecido e falecido há dois anos. E todos os jornais e televisões, mesmo aquelas em que os dois diferentes actores tinham trabalhado, foram atrás.
Pois é. Para que jornalismo seja o maior obstáculo ao boato, tem mesmo de se fazer jornalismo!
Esta bem poderia ser a semana dos horrores. Começou com o diabo disfarçado de eleições no Brasil, e continuou com os horrores de tudo o que se disse e escreveu a esse propósito, ainda antes de começarem os horrores propriamente ditos. Que aí virão, certamente.
Passou pela esperada aprovação do Orçamento de Estado, para uns, cheio de horrores a que chamam eleitoralismo. Mas sem o diabo, essa figura central do horror tão anunciada para esta legislatura, definitivamente afastada. Se não apareceu nesta semana de diabos e diabretes, é porque já não vai aparecer.
E acabou – está a acabar – com o Halloween, essa orgia de horror que os Celtas criaram na sua passagem de ano, acreditando que a fronteira entre um ano e o seguinte, com o frio do Outono, fazia tremer a própria fronteira entre mortos e vivos, e que a diáspora irlandesa levou para a América, para aí transformar num festival de entretenimento exportado para todo o mundo com grande sucesso comercial, como aconteceu com praticamente tudo. Nada que o Papa Gregório IV conseguisse abalar com a introdução do Dia de Todos os Santos que hoje só quase leva a romagens aos cemitérios, também elas revestidas de boa carga comercial.
Em tempo de fake news, esta semana comemorou a primeira de que há registo, marcada, como não poderia deixar de ser, pelo terror, numa brincadeira sem consequências. Há oitenta anos, comemorados agora, Orson Wells interrompeu a emissão radiofónica da CBS para noticiar que os marcianos estavam a invadir New Jersey, lançando milhões de pessoas no pânico.
Dos marcianos temo-nos livrado. Das fake news, já com consequências, e terríveis, não. Invadiram-nos por todos os lados, espalhando terror à conta do mais tenebroso invasor da Humanidade que se dá pelo nome de ignorância. Essa sim, medonha!
É mais ou menos do domínio público que nos resultados do referendo que ditaram o Brexit foi grande a influência das fake news. É conhecido que Donald Trump foi eleito através de uma campanha toda ela assente em fake news. E que na campanha que está a levar Bolsonaro à presidência do Brasil, as fake news terão provavelmente atingido dimensão e consequências nunca antes alcançadas. É de tal forma que o candidato não precisa de apresentar uma única ideia sobre um único tema, que na verdade não tem, e recusa-se a participar em qualquer debate, na assunção óbvia que o que quer diga só atrapalha o "bom trabalho" da campanha negra levada a cabo nas redes socais.
Chegaram até notícias, através de uma reportagem de uma reputada jornalista da Folha de S. Paulo - Patrícia Campos Mello - que um grupo de empressários teria investido mais umas dezenas de milhões de reais para um novo e deciso ataque de fake news para esta última semana, antes das eleições do próximo domingo. Chegaram também notícias de queixa ao Supremo Tribunal, que poderia afastar Bolsonaro da votação de domingo, porquanto a compra desses serviços configura uma doação não declarada para a campanha, o que é de todo ilegal no Brasil.
Por cá, há muito que chocamos com fake news por todo o lado. Especialmente, claro está, naquele que é o seu habitat natural, nos esgotos das redes sociais, que nem ratos, onde é surpreendente a forma como se multiplicam através de milhares de partilhas e comentários. Muitas vezes acabamos surpreendidos ao encontrarmos nessas partilhas e nesses comentários gente que nunca julgaríamos possível ver entrar naquele barco. Mas, é a vida...
O Diário de Notícias foi investigar donde vêm as fake news nacionais, e publicou ontem um trabalho notável. Ficamos por exemplo a saber que vêm do Canadá, e que, muitas vezes, uma mesma notícia serve para vários destinos, alterando-lhe apenas os nomes e as fotografias.
António Costa foi claro a propósito do jantar da Web Summit no Panteão Nacional. Classificou-o de "ofensivo", numa utilização “absolutamente indigna do respeito devido à memória dos que aí honramos”. Em nota enviada à imporensa, o gabinete do primeiro-ministro declarou "ofensivo utilizar desse modo um monumento nacional com as características e particularidades do Panteão Nacional”.
Desde logo a generalidade da imprensa, seguindo de resto a pista do secretário de Estado da Cultura do governo anterior, que permitira aquela utilização e fixara a respectiva tabela de preços, entendeu que a coisa não podia ficar bem assim, e que António Costa teria de ter as suas responsabilidades. Tivera dois anos para alterar a lei, apressaram-se os jornais...
Logo depois, agora seguindo a pista da senhora que é responsável pelo monumento, que fez o negócio, que nem pediu desculpa a ninguém nem se demite, relativizou: o Panteão Nacional já tinha sido usado para fins idênticos em várias outras ocasiões. Para, logo a seguir, e como o jornal i traz hoje à capa, mas que podemos ver em todos os jornais e televisões, identificar António Costa como "padrinho" ou mesmo promotor de uma dessas ocasiões: um jantar organizado em Setembro de 2013 pela Associação de Turismo de Lisboa, de que António Costa era, por inerência, presidente, destinado à promoção do Fado.
O desmentido foi imediato. O então presidente da Câmara de Lisboa, confirmado pelo então Director Geral de Turismo, não teve sequer conhecimento de tal realização.
Como sempre, o desmentido não tem qualquer impacto, e as caixas de comentários da notícia já estão invadidas por um frenético exército fortemente armado de impropérios e ignorância, pronto a destruir tudo à sua passagem.
Ainda há poucos dias, enquanto nas televisões passavam imagens (incluindo a de António Costa) da tomada de posse dos dois novos ministros e secretários de Estado, uma delas, a TVI, com o ângulo da câmara mais fechado, dizia através da repórter no local, e reproduzia em rodapé, que o primeiro-ministo estava ausente da cerimónia.
Sabemos que é assim, que as fake news são isto mesmo. Temos é dificuldade em perceber por que tem de ser assim!
Bem cedo se percebeu que a tragédia iria ser objecto de aproveitamento político. Que o diabo anunciado para o Verão passado estaria para chegar, com um ano de atraso, e agora no seu habitat natural, nas chamas do inferno em que o país se tornou.
Tudo começou, se bem se lembram, com a notícia da queda do avião que não caiu, ainda em pleno combate ao incêndio do Pedrogão Grande. Logo a seguir surgiu a notícia dos suicídios, dada pelo próprio profecta do diabo, a que se sucedeu a inacreditável série de artigos publicados no El Mundo, assinados por um jornalista virtual, o tal Sebastião Pereira, que continua a monte. Sem que ninguém se preocupe muito em encontra-lo.
Num país onde coubesse um só bocadinho de vergonha, esta sucessão de episódios, inspirados nas fake news, que Trump passou a exportar para todo o mundo, teria ficado por aqui.
Não ficou. Neste país já não há lugar para um pingo de vergonha. Não admira que, por isso, tenha sido um jornal dito de referência, o maior e mais influente semanário do país, a não ter vergonha de usar a primeira página para lançar o boato sobre o número de mortes anunciadas. Vergonha ainda mais indesculpável quando, depois, o corpo do texto não tem nada a ver com o título puxado para manchete.
Muita gente se indignou com a chegada de Trump à presidência da América. Mas nem todos perceberam o que isso poderia vir a significar. Muitos percebemos que Trump era um grande mal para a América, poucos perceberam que seria um mal muito maior para outras partes do mundo. É que, por lá, continua a haver jornalistas capazes de o desmascarar, e de denunciar as suas fake news. Por cá, não!
Não houve – não há – jornalista que escrutine e valide a notícia antes de a dar, como mandam a ética e a deontologia. Uma lista de uma senhora, ao que se diz empresária, e ao que se conhece de currículo pouco respeitável, foi quanto baste para suportar um boato macabro. Ninguém se preocupou em compará-la com o que quer que fosse. Ninguém se interessou sequer em ver que lá havia nomes repetidos…
Não. Era preciso lançar a bola de neve. Um número interminável de abutres, maior que o da lista que apregoavam, estava à espera. E este jornalismo não gosta de os fazer esperar!
* Da minha crónica de hoje na Cister FM
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