Lembro-me como se fosse hoje do assalto ao Santa Maria. Foi há 60 anos!
Lembro-me de todos lá em casa colados ao rádio a ouvir as notícias que nos queriam dar. Que o paquete tinha sido tomado por piratas. Tinha cinco anos, e não percebia que não era um acto de pirataria, mas apenas o primeiro grande acto de revolta contra o regime fascista de Salazar e do Estado Novo com projecção internacional. A primeira vez que, sob o comando de ex-capitão Henrique Galvão, pequeno de corpo mas gigante de coragem, portugueses diziam ao mundo que não estavam conformados com a ditadura que os oprimia há já longos 34 anos.
O que então não percebia mesmo era como era possível tomar de assalto um barco. Imaginava uma enorme passadeira estendia sobre o mar, e achava de uma grande coragem atravessá-la para chegar ao barco e trepar depois aquela altura toda até entrarem no navio. E não me imaginava, sessenta anos depois, a evocar um acontecimento que seria um dos maiores golpes desferidos contra o regime.
A Constituição da República Portuguesa, no capítulo que dedica aos direitos, liberdades e garantias pessoais dispõe, no seu artigo 46ª (liberdade de associação), que "os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal" e que (número 4) "não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista".
Está anunciada para o próximo sábado, em Lisboa, uma reunião internacional de extrema-direita que, pelos nomes divulgados, incluindo o do português Mário Machado, dado por organizador, junta organizações inequivocamente racistas que, inequivocamente perfilham a ideologia fascista.
A sociedade civil tem vindo a alertar para o fenómeno, e está até preparada uma manifestação de protesto para o Rossio, em Lisboa. Do governo e do Presidente da República (bom, já disse alguma coisa, sem que tivesse dito coisa alguma, como também não é novidade), nem uma palavra. O que não quer dizer que estejam a andar mal, ou que não esteja a ser feito o que tem de ser feito. Ninguém esperaria palavra nenhuma, e provavelmente o melhor será mesmo ficarem calados. A única atitude que se espera, e que se exige, é que façam cumprir a Constituição da República. Que prometeram cumprir e fazer cumprir, num juramento que não pode ser simples ritual!
Tão simples quanto isso. Ninguém espera palavras de condenação do Presidente da República, nem ver o primeiro-ministro a rasgar as vestes. Espera-se apenas que façam cumprir a lei, impedindo a realização desse evento, e deixando ao mundo um apontamento de dignidade.
Tudo o que não seja isto é apenas imperdoável. E vergonhoso!
Confesso-me estarrecido com as coisas que tenho visto escritas sobre a decisão eleitoral dos brasileiros. Não me refiro à Margarida Martins, essa deixou-me chocado. Duplamente chocado - com o soneto e com a emenda!
Nem aos que se tinham declarado apoiantes convictos de Bolsonaro, seja porque defendem o fascismo, seja porque ainda não perceberam muito bem o que andam por cá a fazer. Refiro-me àqueles que, até domingo, juravam que acima de tudo estava a necessidade e a obrigação de defender a democracia. Que, se votassem, fariam como Álvaro Cunhal fez, e aconselhou fazer, em 1986. Que entre um fascista, e um democrata nas antípodas do seu pensamento, sempre o democrata. E que se riam dos brasileiros que diziam que apeariam Bolsonaro se ele viesse a fazer o que dizia que faria.
Mas que, de repente, logo no domingo, passaram a achar que nada poderia ter sido de outra maneira. Que quem está cá deste lado do Atlântico não percebe nada do que passa do lado de lá. Que ódio é ódio, e o que o Lula e o PT fizeram não merece outra coisa. Que o povo é sábio, e nunca se engana. Que o fascismo de Bolsonaro é uma ficção da esquerda. Que a palavra liberdade foi a mais repetida no discurso de vitória. Enfim, que o "cara" não é nada do que pintam.
Pois. Eu até estava quase a ficar convencido. O diabo é que, de repente, começaram a desfilar pelas passadeiras da minha mente as declarações de voto daquela gente no parlamento que ditou o impeachement da Dilma. Depois aquela "oração" daquele militante evangélico de mãos dadas com o presidente eleito, de mãos dadas com a sua jovem esposa.
E quando sacudia a cabeça para afastar para longe estes pensamentos caem-me os olhos no apelo da jovem deputada Ana Caroline Campagnolo, eleita pelo PSL (percebem por que o outro teve que escolher Aliança?) de Bolsonaro. Que abriu um canal de denúncias e exorta os jovens a filmar os professores inconformados com o resultado eleitoral, e a remeter-lhe esses vídeos...
Que fofinha... Que fofinhos eles são!
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