O país veio para a rua naquela que terá sido uma das maiores manifestações de sempre... e provavelmente a maior desde os tempos de Abril!
O país estava a precisar disto... E se me é permitido algum egoísmo, eu estava a precisar disto... Precisava de viver uma coisa assim, que me permitisse voltar a acreditar, voltar a identificar-me e voltar a encontrar-me neste país que é o meu e no qual quero continuar a acreditar...
No sábado, como canta Chico Buarque, a festa foi bonita. Foi bonita festa, pá! Duzentas ou trezentas mil pessoas nas ruas, de todas gerações: avós, pais, filhos e netos encheram as praças e as avenidas das nossas cidades. Num protesto cívico e digno, saído do povo – de todos nós – sem botões de comando em qualquer central partidária...
Uma manifestação que nasceu espontânea e descontraída e que a partir das novas formas de comunicar atingiu proporções impensáveis. Porque um grupo de jovens decidiu lembrar a outros jovens que protestar é preciso. E esses passaram a outros e outros a outros ainda, numa bola de neve que ninguém conseguiu mais parar.
Uma manifestação inconsequente, dizem! Não me importa muito. Importa-me muito mais que foi digna, responsável, cívica, pacífica e exemplar. Sem exageros de qualquer espécie. Sem violência, sem extremismos nem radicalismos. Longe, bem longe das imagens de destruição e violência de outros países europeus, como que a lembrar-lhes que também têm coisas a aprender connosco. E a lembrar-nos a nós que, quando queremos, sabemos fazer as coisas tão bem ou melhor que os outros...
Lembrando-nos que há mais de 30 anos também usamos cravos em vez de armas. Que houve Abril, se calhar com muitos momentos como este.... que nos enchem a alma e nos fazem acreditar.
Acreditar que afinal não somos uma massa inerte e amorfa. Alheia e indiferente a tudo, sem voz, sem consciência e sem noção de um mundo de pessoas a sério que é muito mais do que aquele que está ao alcance de um clique. Acreditar que este pode ser o princípio da mudança. Acreditar que o valor da abstenção nas últimas eleições presidenciais foi apenas um descuido de percurso... Que esta gente não se está nas tintas, não é indiferente nem negligente... Que está envolvida com o país e que no momento certo, na forma certa e nas doses certas o sabe demonstrar. Acreditar que, se calhar, ainda é possível sonhar um país, porque sabemos que o país muda … se nós mudarmos! Que o país não fará por nós aquilo que nós não soubermos fazer por ele...
Se acredito em tudo isto? Quero acreditar e acho que mereço acreditar! Deixem-me acreditar… Não estraguem!
Não sei se foram 200 ou 300 mil os portugueses de todas as idades que ontem deram voz ao protesto e à indignação que atravessa o país de lés a lés. Não me importa quantos foram porque eu vi lá todo o meu país!
E gostei do que vi. Gostei deste meu país que lá vi, bem diferente de outros países que tenho visto por esse mundo fora! Bem diferente do que vi na Grécia, ou do que vi em França…
O que é que vi?
Vi uma enorme multidão ordeira, que não provocou sequer um leve desacato…
Vi uma multidão pacífica, que nem um vidro partiu. Nada!
Vi as portas fecharem-se ao aproveitamento partidário.
Vi uma só bandeira, a bandeira nacional… e ouvi cantar o hino como há muito não ouvia!
E vi ali dignidade…
Bastou-me ver isto. O resto, agora, não me interessa nada!
Cavaco tomou posse e voltamos à normalidade institucional: toda a gente na plenitude dos seus poderes, sem constrangimentos!
O pior foi o discurso! Bom, o pior não foi propriamente o discurso, foi o estado em que deixou as coisas…
Que o discurso de tomada de posse de Cavaco seria incomodativo para Sócrates – não vale a pena dizer para o governo: o governo é Sócrates, e Sócrates é o governo – já todos sabíamos. Já aqui o tinha previsto ao apontá-lo como uma das marcas de uma semana bem complicada para Sócrates: nenhuma novidade, portanto.
Também, a propósito desse discurso, aqui deixara dois votos: que limpasse o discurso de vitória e que desse sinais de que percebia a sua quota-parte de responsabilidade no estado do país, a condição sine qua non para se revelar parte da solução.
Se fui bem sucedido na previsão – não era difícil acertar – já nos votos que formulara não tive direito a nada. O que é condição suficiente para baralhar o discurso por completo!
É que, ao não limpar o discurso de vitória, este da tomada de posse confunde-se com a parte II do ajuste de contas. E, ao não deixar transparecer a mais leve responsabilidade neste estado de coisas, retira credibilidade ao diagnóstico. Que, apesar de há muito estar feito por toda a gente neste país, constituía o prato forte do discurso e o mais consensual!
Assim lá se ficou pela tareia a Sócrates com ameaças de “ainda vais levar mais”. Ah! E com os incentivos à revolta da geração à rasca… Ou da geração P…
Parece-me que, em qualquer país decente do mundo, qualquer primeiro-ministro minimamente decente teria entregue em Belém hoje, bem cedinho, logo pela manhã, um bilhetinho com a demissão!
E lembrarmo-nos que já ouvimos falar de pântano e de trapalhadas!
Ontem à noite um grupo de rapazes e raparigas da geração à rasca interrompeu um pacato jantar de campanha de Sócrates, em Viseu.
E incomodou!
Incomodou porque se incomoda sempre que se interrompe o que quer que seja. Mas incomodou muito mais porque estavam lá as televisões, que mostraram tudo. E incomodou ainda porque foi logo no início de uma semana verdadeiramente incomodativa para Sócrates – o que é mais do que justo, porque há muito que é ele a incomodar-nos durante semanas, meses e anos a fio!
Esta semana incómoda – tomada posse do Presidente, com um esperado discurso incomodativo, moção de censura, que apesar de tudo ainda trará os seus incómodos, e a terminar com a bastante incomodativa manifestação de sábado – é bem capaz de deixar Sócrates à rasca. Com os ouvidos ainda a acusar o zumbido dos ecos de uma certa votação num festival de cantigas, e a face já roborizada a pensar naquelas imagens a atravessar a Europa lá para Maio, aquela inesperada manifestação de hostilidade ali nas barbas de toda a sua rapaziada não era bom sinal.
Sócrates, no seu melhor, esforçou-se por desvalorizar: “…é isto que fazemos uns aos outros no Carnaval”!
Será que Sócrates acha mesmo que tudo isto não passa de uma partida de Carnaval?
Admito que sim! Porque ele acredita mesmo que vivemos num Carnaval permanente. Que o que é preciso é mascarmo-nos, fazer de conta. E que pode continuar a pregar-nos as suas partidas. Porque é Carnaval, ninguém leva a mal!
A opinião publicada tenta reinventar a velha luta de classes de Marx aplicando-a agora a um novo conceito em que as gerações substituem as classes sociais. Onde as gerações mais novas são agora o proletariado oprimido e explorado pela burguesia opressora e exploradora que são os mais velhos. Os seus pais, vejam bem!
A ideia começou a espalhar-se já há alguns anos com a perspectiva de, pela primeira vez, os filhos poderem vir a ter uma qualidade de vida inferior à dos seus pais. Sem grandes justificações mas apenas porque sim.
Depois foram os investimentos públicos nas mais diversas infra-estruturas a dar uma mãozinha. Que, agora cada vez mais sofisticados e exigentes nas suas múltiplas variáveis, projectam responsabilidades financeiras sobre várias décadas, a partir de cada vez mais sofisticadas engenharias financeiras “legitimadas” por um princípio novo que se dá pelo nome de utilizador-pagador. Ora, se as gerações vindouras virão a ser utilizadoras…
Claro que também herdam muitas dívidas sem contrapartida, porque se andamos há tanto tempo a consumir mais do que produzimos, alguém haverá de pagar isso. Se pagar… mas isso é outra estória!
Mas também o mundo mudou. E muito! Apenas três exemplos bem espalhados pelas duas últimas décadas: o desabamento do bloco de leste, a posterior e consequente globalização, e a questão demográfica.
Com o desaparecimento, por implosão, do bloco soviético desapareceu também o grande “regulador” do sistema. Paralelamente aumentava esmagadoramente a oferta de uma mão-de-obra bem qualificada e barata.
A globalização gera deslocalizações de investimento, com a consequente perda de postos de trabalho mas, fundamentalmente, obriga à deslocalização de recursos, com o surgimento de largos milhões de novos consumidores que aspiram um dia chegar aos padrões de consumo do mundo desenvolvido.
E que, com a ajuda da redução da taxa de natalidade nos países mais desenvolvidos, põem em causa uma enorme série de coisas que dávamos por adquiridas: os tais célebres direitos adquiridos que muitos, por andarem distraídos ou por quererem distrair os outros, querem dar por sagrados.
As novas gerações vivem níveis de conforto como nenhuma outra. Apresentam-se como a geração mais qualificada. E são – no na realidade, porque dispuseram de condições como nenhuma outra. Mas é também por isso, porque essa qualificação não é hoje uma vantagem comparativa tão decisiva como nas gerações anteriores, que lhes está mais fechado o acesso aos níveis de conforto dessas gerações. Recorrendo à imagem – que não é minha, vi-a por aí, não sei onde – de um diploma equiparado a um bilhete de lotaria, agora, com tantos, é mais difícil ser premiado.
Parece-me que seria mais interessante discutir isto – isto e o resto, bem entendido, porque os problemas existem, não são meras invenções destes jovens de hoje, como existem todos os outros que afectam todos os outros, em particular os que têm o azar de cair no desemprego logo a partir dos 40 anos – do que inventar uma guerra de gerações alimentada por uns tantos analistas que, à esquerda e à direita, gostam de se entreter com exercícios que acabam mas é por chocar as gerações. Todas!
Creio que, nunca como agora, aquilo que sempre entendemos como choque de gerações esteve tão esbatido. O que hoje temos para enfrentar não é um choque de gerações, são dificuldades, e muitas, que atravessam todas as gerações. Estamos todos à rasca, essa é que é essa!
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