Tenho enorme dificuldade em perceber por que é que as pessoas se não limitam a concordar ou a discordar da greve, a fazer ou não fazer greve, conforme a sua vontade e as suas possibilidades. Por que é que haverão de passar daí? E por que é que ainda acham que têm legitimidade para passar daí?
Se calhar é culpa de um mas que anda por aí: é que a greve é um direito. Inalienável, sagrado, inquestionável... Mas...É deste mas!
Não tem que haver mas. A não ser este: mas não tenho grande dificuldade em perceber que a democracia portuguesa se esteja a transformar numa miragem. Ou numa memória perdida. Que sociedade portuguesa esteja cada vez menos tolerante. Cada vez mais dividida... Cada vez mais próxima da rotura...
Hoje é dia de greve geral. Mas o país não parou: há muita gente com a vida transtornada, mas não muito mais que isso!
Certas greves correm de facto o risco de não passar muito disso: de transtornarem a vida a muitos cidadãos e gerar alguns prejuízos num ou noutro sector, ou mesmo em toda a economia, como vem sucedendo com a greve dos estivadores.
Defendo o direito à greve como um dos direitos sagrados e inalienáveis, que fique claro. Mas como instrumento eminentemente laboral, um instrumento dos trabalhadores que lhes permita mitigar – como eu gosto desta palavra desde que o ministro das finanças a utilizou – a colossal (outra!) diferença de poder na relação laboral entre empregadores e empregados. É uma arma – a mais poderosa – de que os trabalhadores dispõem para fazer valer os seus interesses quando antagónicos ou conflituantes com os da entidade empregadora. É esse o seu espaço natural!
Utilizar recorrentemente a greve como instrumento de luta política corre esse risco de o desvalorizar, ou mesmo de virar a arma contra quem a utiliza. Ao utilizá-la como instrumento de reforço do seu poder e do seu peso político específico, Arménio Carlos também não ajuda ... se não Carvalho da Silva!
Duas greves por ano contra a política do governo parecem coisa despropositada. No mínimo tão despropositada quanto a própria política do governo. E Arménio Carlos já hoje anunciou que iria debruçar-se sobre as funções do presidente da república e ainda sobre as matérias inconstitucionais no Orçamento do Estado. É evidente que tem todo o direito de se pronunciar sobre esses ou quaisquer outros temas da vida nacional, não pode - não deve – é anunciá-lo como matérias da competência institucional da CGTP, deixando no ar – quem sabe? – que também pode marcar greves para influenciar na definição das funções do Chefe de Estado ou na fiscalização da constitucionalidade.
Há um campo para as greves e outro para as manifestações e outras manifestações cívicas. Em democracia, a intercepção de ambos deve ser um espaço muito reduzido. Tão reduzido quanto o da repressão policial. Ou o da provocação que a motive!
A carga da polícia, ontem no Chiado, parece que foi exagerada e desproporcionada - como acontece sempre que a polícia bate – mas o único problema é que aquilo foi a eito e nem jornalistas e fotógrafos escaparam. O que também não é exactamente novidade!
Sabe-se que a polícia gosta de molhar a sopa, está-lhe na massa do sangue. Há por ali adrenalina que só encontra saída na ponta do bastão… E muitos valentões que acham muito mais corajoso bater em manifestantes em fuga que enfrentar e perseguir criminosos, de que, não raro, desviam o olhar para que não se lhes fira a atenção nem a consciência.
Os responsáveis pela Polícia, como também sempre acontece, desvalorizam os exageros dos senhores agentes. O problema mesmo é os jornalistas. Aos outros - acham eles e muito mais gente - só se perdem as que caiam no chão…
E já resolveram o problema: um colete reflector. Que está na moda e é muito fashion! E, já agora, igual aos dos polícias...
Já nem a greve geral tem o mesmo encanto. Confesso que o que mais me encantava nas greves gerais era a guerra dos números, os 8% de adesão do governo e os 80 dos sindicatos. Aquilo é que era, não havia vergonha. Era mesmo assim!
Nunca ninguém ficava a conhecer a verdade, mas sempre dava para entreter, tipo palavras cruzadas ou sudoku. Uns achavam que fazendo a média aritmética dos dois números se chegaria lá. Outros, mais eruditos na matemáticas, propunham algoritmos mais complexos… Mas a verdade é que essa – a verdade – permanecia incógnita de uma equação irresolúvel.
Até isso nos tiraram. Já nem sei para que é que serve agora uma greve geral…
A greve geral deste dia 24, que acaba de chegar ao fim, não foi muito diferente das outras. A mesma data - 24 de Novembro – do ano passado. A mesma repetição, até à exaustão, da legitimidade do respectivo direito. Toda a gente acha que a greve é um direito indiscutível, inalienável e que tem que ser respeitado.
Toda a gente acha que a greve é um direito respeitável, mas… Pelo que se viu por aí fora há sempre um mas, toda a gente tem uma mas a acrescentar. Que, mais ou menos atabalhoado, mais ou menos engasgado, serve tão simplesmente para dizer que o direito à greve existe mas não devia existir! Tal e qual!
Verdadeira novidade foi a ausência da famosa e clássica guerra dos números. Já diz o povo: para teimar são precisos dois! Como para dançar o tango, como dizia o outro… Os sindicatos não deixaram os seus créditos por mãos alheias – as coisas também não estão para isso – e, sem abdicar do seu papel, partiram para a luta. E não fizeram a coisa por menos: mais de 90%! O governo ainda deu mostras de ir a jogo – logo pela manhã já estava de peio feito e de provocação em grande estilo a anunciar os seus 3,6% - mas, depois, o patrão Relvas deu meia volta e mandou recolher. Não entramos nessa guerra – sentenciou. E pronto, não há discussão, ninguém teima e não há guerra!
Não será certamente novidade que muita gente que achava que deveria ter feito greve tenha ido trabalhar. Como não é novidade nenhuma que a adesão à greve tenha sido grande no sector público e muito reduzida no sector privado. O que de algum modo terá suavizado os terríveis prejuízos para o país…
Se a mobilização para a greve advém das dificílimas condições de vida impostas aos portugueses – não importa se com ou sem alternativas, e nem sequer se com ou sem enquadramento no manifesto do Dr Soares – é claro que, da imensa e esmagadora maioria dos portugueses que vive os mais duros dias das suas vidas, grande parte estaria disponível para aderir à greve. Razões não lhes faltam! Muitos – muitos mesmo – não o fizeram porque não podem sequer prescindir do salário que perderiam. Outros não o fizeram por conflito de interesses. Pela consciência – particularmente no sector privado - de que o seu direito legítimo de fazer greve conflituava com o interesse da empresa que lhe garante o sustento ou - mesmo no sector público – de que o exercício desse seu direito prejudicava outros concidadãos.
É natural que a adesão se tenha concentrado no sector público. É historicamente assim. É aí que se concentram os trabalhadores – não digo os portugueses – mais penalizados e é aí, apesar de tudo e sem paradoxos, que ainda poderá residir alguma capacidade para perder um dia de salário. Vamos a ver se isto não dá mais umas ideias ao governo, acabando por descobrir que, afinal, ainda há lá mais uns trocos para sacar!
O resto são posições ideológicas. Os que são contra as greves. Porque sim! Os que as vêm como o remédio para todos os males. Ou os que as delas têm uma visão meramente instrumental. Os dos mas e até os que acham que a chinesa Dagong e a americana Fitch acabam de baixar o rating da República (mais um lixo) precisamente por causa da greve.
Há gente que não percebe que as sociedades precisam de válvulas de escape. E que, nas actuais circunstâncias, é fundamental que a mais que justificada indignação esteja institucionalmente enquadrada. Para que incidentes sem expressão - como simples actos de vandalismo em meia dúzia de locais (entre os quais algumas repartições de finanças) ou os incidentes do final do dia junto ao palácio de S. Bento – não venham abrir caminho a fenómenos de contestação difusos e inorgânicos, que facilmente degeneram em descontrolada violência social.
Hoje tivemos greve geral… Pareceu-me pouco geral, mas pode ser só uma impressão. Para esclarecer isso aí estarão, mais logo nos telejornais, as centrais sindicais a reivindicar uma adesão … vá lá, de 90% e o governo a dizer que não deu por nada. 10%, se tanto!
Pronto, está bem, ficamos nos 80-20 e não se fala mais nisso!
Apesar do que já ouvi hoje por aí, a propósito da vox populi que nos chega através desses autênticos tesourinhos deprimentes que são as antenas abertas das rádios e até das televisões, estou convencido que, entre todos os outros portugueses que não entram nesses comboios, os portugueses bem pensantes, chamemos-lhe assim, nunca houve uma greve geral que recolhesse tanto apoio como esta. Mais uma vez pode ser apenas uma impressão, mas cheira-me que, desta vez, a greve geral não produziu qualquer clivagem na sociedade portuguesa. Foi pacífica, não obstante ter aparecido por aí um artista a atropelar uns empregados. Mas deve ter sido por terem atravessado fora da passadeira!
Mas a verdade é que também me parece que a greve geral mais consensual de sempre corresponde à greve geral mais inútil de sempre. É só mais outra impressão, mas parece-me mesmo que esta greve geral não serviu para nada. Amanhã estará tudo na mesma, quer dizer, pior, como todos os nossos amanhãs!
A greve, esse direito dos trabalhadores que, é bom não esquecer, apenas as democracias garantem, é um instrumento vocacionado para o espaço laboral. Quando passa essa fronteira e invade o espaço da política dá mau resultado. Fico com a impressão que perde a eficácia. É assim como utilizar um garfo para comer a sopa! Também serve para comer, mas não dá muito jeito para a sopa...
Pode ser apenas mais uma impressão, mas a greve geral, á nossa maneira – pacata, cívica ou mansa, como muitos dizem – para estas coisas, para as coisas que realmente estão agora em causa, não passa de folclore. Não é como os franceses e até mesmo os gregos. Aí não é só folclore. Aquilo assusta! E se assusta mete medo...
Acompanhe-nos
Pesquisar
Subscrever por e-mail
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.