A guerra já vai para dez anos, mas só contamos um. Faz hoje um ano que, naquela quinta-feria, a Rússia invadiu a Ucrânia. Com a ideia declarada que seria para resolver a guerra, já velha, num simples fim-de-semana.
Não foi nada disso, as contas de Putin estavam mais uma vez erradas.
Um ano depois, a Ucrânia resistiu, e uma boa parte do mundo, e também a parte boa, uniu-se à sua resistência. Uns, genuinamente, outros, com muita hipocrisia. Como a ilusão da integração europeia. Ou as sanções económicas á Rússia. Para a elite global só contam as sanções que não toquem nos seus interesses. Esses estão sempre noutro patamar, bem acima do dos valores, do dos princípios, e do sofrimento do povo ucraniano.Ou de qualquer outro.
Um ano depois, Putin continua a poder financiar a guerra. E, enquanto o puder, não dará espaço à paz. E quando o vier a deixar de poder, pode até ser pior.
Um ano depois, encheu um estádio de futebol, com 200 mil pessoas num comício de "Glória aos Defensores da Pátria", em êxtase, a validarem uma operação de lavagem ao cérebro de duas horas. Como se não via na Europa desde 1935, na Alemanha.
Um ano depois, morreram nesta guerra 100 mil militares ucranianos (e 180 mil do lado russo) e, oficialmente, 8 mil civis. Que poderão ser, na realidade, 30 mil.
Um ano depois, oito milhões de ucranianos (20% da população) são refugiados em diversos países europeus. E seis milhões são desalojados no seu país.
Um ano depois, o PIB da Ucrânia caiu mais de 30%.
Um ano depois, a destruição provocada pelos bombardeamentos russos nas estruturas e equipamentos da Ucrânia rondará os 750 mil milhões de dólares.
Um ano depois, os danos ambientais da guerra ultrapassarão os 48 mil milhões de dólares.
Um ano depois, depois de nos terem sido "vendidas" tantas vitórias e derrotas, já não conseguimos fazer ideia do que seja uma vitória e uma derrota. Sabemos apenas que, não tendo o mundo, afinal, mudado assim tão completamente, se tornou num lugar muito mais perigoso!
Dez meses depois Putin refere-se pela primeira vez à guerra como guerra. A palavra proibida, que dava até pena de prisão, é agora palavra apropriada ao que continua a passar-se na Ucrânia, 10 meses depois do dia da invasão..
O que mudou?
Nada. Simplesmente uma "operação militar especial" não pode durar 10 meses, um ano, dois, três... Sabe-se lá quantos...
Não. Não é "lapsus linguae" de Putin. É apenas a confirmação de boca própria que a estratégia falhou em toda a linha. E a forma que encontrou de o continuar a negar!
Em vésperas de 10 meses de guerra, e às portas do Natal, Zelensky foi a Washington, na sua primeira saída do país depois da invasão russa. Foi uma visita de "charme", para conquistar corações americanos. Democratas, e acima de tudo republicanos, bem mais frios...
De lá, trouxe promessas de mais apoio militar, incluindo os mísseis Patriot. Promessas de amor para toda a vida e avisos para Putin...
Mas foi acima de tudo uma visita para voltar a "dar gás" à causa ucraniana. Para voltar a colocá-la no topo da actualidade mundial. Zelensky sabe que deixar cair a guerra das primeiras páginas dos jornais, e do "prime time" noticioso das televisões, é o primeiro passo para o esquecimento.
Isso vai muito para além de todas as promessas. E conseguiu-o!
Os falcões da guerra salivaram, e no extremo leste da NATO gritou-se em uníssono pelo artigo 5º. Biden puxou de imediato de um copo de água, que serviu de imediato ao Sr Jens (falcão) Stoltenberg.
Se o copo de água serviu para lhe limpar a saliva, ou para meter lá dentro a tempestade, é a dúvida que sobra.
Um copo de água pode estar meio cheio. Ou meio vazio. Mas também pode partir-se.
No copo meio cheio, podemos ver sinais de esgotamento. São já nove meses meses de duro e exigente teste à sua resistência física e mental. No copo meio vazio podemos ver simplesmente um sinal de deslumbramento. Mais preocupante é que o copo se tenha partido e entornado toda a água se, no fim de contas, ele tiver razão, e o míssil seja mesmo russo!
Um mês depois do referendo fantoche de Putin, Kherson caiu. As tropas russas simplesmente retiraram, e a cidade e a região estão em festa. Como Kiev, e toda a Ucrânia.
A bandeira da Ucrânia - e também, sintomaticamente, a da União Europeia - está de novo hasteada em Kherson.
Que a guerra tinha virado há muito, já sabíamos. Que tinha virado tão decisivamente é que não. Mais do que a importância da vitória ucraniana em Kherson, é a forma como as tropas russas retiraram que confirma a viragem decisiva no percurso da guerra. Que, contudo, ainda não acabou. E poderá nem estar perto disso.
Mas que hoje, como disse Zelensky, é um dia histórico, lá isso é!
Os ataques de mísseis russos hoje lançados sobe Kiev, e outras cidades, todos contra alvos não militares, áreas residenciais e locais mais movimentados - os maiores desde o início da invasão - não são uma resposta ao acto de sabotagem do fim de semana, sobre a ponte que liga a Rússia à Crimeia. Até porque um ataque desta dimensão teria que já estar preparado. São, antes, a resposta de Putin às sucessivas derrotas das suas tropas no terreno de batalha, e à onda de contestação interna que inequivocamente enfrenta. É um acto de cobardia!
Sem capacidade de resposta, interna e externa, à guerra que desencadeou, Putin reage como os cobardes. Se até aqui se temiam os actos de um louco, agora acresce o terror e medo que um cobarde acrescenta a um louco!
Após praticamente 7 meses de guerra, e numa altura em que acumula reveses, Putin surgiu hoje num discurso previsível. Depois de anunciado para ontem, e depois adiado - sem outra razão aparente que não o dar espaço aos líderes fantoches das ditas Repúblicas da região do Donbass de anunciarem previamente os referendos, já para o final da semana, para acelerar a integração de facto -, o discurso de Putin acentua a escalada da guerra, expressão que utiliza pela primeira vez, e a que dificilmente poderia fugir, depois de anunciar a mobilização parcial que, pela legislação que fizera publicar na véspera, é o eufemismo de mobilização geral.
Não é surpresa. Com derrotas sucessivas no terreno, em debandada de boa parte do território antes ocupado, e com as perdas sofridas, em homens e equipamentos, mais um passo na mobilização forçada, que evidentemente alargará aos novos territórios imediatamente a seguir aos referendos, era esperada.
Não seria de todo inesperado que, neste contexto de insucesso militar, lançasse, agora ele próprio, a ameaça de uso do armamento nuclear. Fê-lo de forma expressa: "Temos meios mais poderosos que a NATO. Se necessário utilizaremos tudo o que temos à disposição". E isso é bem mais preocupante que os anteriores recados anteriormente enviados por Medveded.
Pode haver quem veja nesta ameaça a fanfarronice do "agarrem-me se não vou-me a eles". Não partilho dessa visão, e receio que a ameaça nuclear, tida desde a primeira hora por distante, esteja mais próxima e seja agora real. Putin já perdeu o suficiente para entrar em pânico. Se um louco é perigoso, um louco em pânico é capaz de tudo!
Para Putin era uma espécie de passeio de fim de semana, tipo vou ali "desnazificar" e já volto. Uma simples "operação especial", de dois ou três dias.
Não era, nem foi. Era, foi e é a invasão de um país soberano, com um povo determinado em resistir, e que não desiste de lutar pela sua sobrevivência enquanto tal.
Passam hoje seis meses sobre a invasão. Hoje, no dia em que os ucranianos celebram a independência. Não se sabe quantos mais se virão a passar. Mas sabe-se que a História diz que quem não desiste não perde!
Passam hoje quatro meses sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Há quatro meses poucos terão admitido que fosse possível aos ucranianos resistirem por tanto tempo, mas todos terão percebido que o mundo mudara nesse 24 de Fevereiro, para nunca mais voltar a ser o mesmo.
Hoje, quatro meses depois, sabe-se apenas que a guerra está para durar. E que o mundo, a mostrar-se cansado da guerra, começa a redesenhar-se.
Com o Conselho Europeu a discutir o alargamento da UE e o estatuto da Ucrânia e da Moldávia, sabendo que terá de abrir essas duas portas em simultâneo, mas também que tem que acelerar todos os processos que estão na fila no resto Balcãs, ou no Cáucaso, tudo regiões complexas e de forte influência histórica e civilizacional russa. E conhecendo, ou devendo conhecer, o risco dessas decisões, agora a tomar contra o tempo. O tempo que, noutro cenário, permitiria processos intermédios de qualificação institucional que esses países ainda não atingiram, e que agora não há.
Com uma cimeira do G7 perante a novidade de um mundo multipolar que de repente se lhe abriu, e em que a incerteza é o único dado certo.
E com a NATO a montar quartel-general em Madrid, para começar a decidir novas fronteiras.
Tudo isto a acontecer por estes dias, enquanto a guerra prossegue, inclemente.
Com a Rússia à beira de conquistar o Donbas poderia até admitir-se que pudesse dar por concluída a "sua operação militar especial”. Seria, à luz da apregoada motivação de Putin, uma hipótese provável não fosse o caso de o início da invasão ter explicitado o objectivo Kiev, e a ocupação do poder na capital. Mas poderá também ganhar força de probabilidade à conta justamente desse insucesso inicial.
Soube-se hoje que a Rússia entrou em default, tendo começado a falhar os seus compromissos, e mesmo que se saiba que Putin lida bem com isso, poderia também contribuir para, sentado naquele sucesso militar, dispor o ditador russo a anunciar o fim da "operação militar especial”.
Mas nem isso significaria o imediato fim da guerra, embora reduzisse certamente a sua intensidade, e permitisse o início de prolongadas negociações. Onde a NATO e a UE poderiam propor o regresso às fronteiras de 23 de Fevereiro, e o envolvimento da ONU na convocação de referendos para definir a soberania dos territórios ocupados. Que Putin dificilmente aceitaria, mas que certamente Zelensky teria de aceitar.
Fora deste cenário, com ou sem declaração do fim da "operação militar especial”, só resta o da guerra prolongada, sabe-se lá por quantos anos. E com que meios. Aí, ficam sem sentido os mapas que por estes dias se estão a traçar na UE e na NATO.
Passam hoje 90 dias sobre o dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de Fevereiro. Três dias antes Putin tinha praticamente confirmado o que no Ocidente há muito se vinha anunciando, e que Moscovo desmentia. Declarando que a nação ucraniana não existia, nem nunca tinha existido, Putin declarava a sua intenção de eliminar a Ucrânia da lista de Estados soberanos, invadindo-a e anexando-a, tal qual Hitler fizera há mais de oito décadas.
Era quinta-feira, e Putin tinha por certo tudo deixar resolvido no fim-de-semana. Como tinha por certo que tudo se resolveria como em 2014, quando anexara a Crimeia. Que o mundo anunciaria umas sanções que nunca cumpriria, e tudo voltaria à realidade do facto consumado, e ao esquecimento em poucos dias.
Sabe-se que não foi assim, e não se sabe ainda como será. Sabe-se apenas que o mundo já não é o mesmo que era há 90 dias ... e que também não será o mesmo que é hoje!
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