Não é só Trump que está a fazer equilibrismo com o assassinato de Khashoggi, o jornalista saudita esquartejado e morto (a ordem parece que é justamente esta, e os restos mortais do jornalista terão já sido encontrados nos jardins da residência do cônsul) no consulado da Arábia Saudita em Istambul. Em França e em Inglaterra não estão a fazer muito melhor, e só Angela Merkel - mais uma vez - parece capaz de uma posição firme e erecta, sem condicionar os princípios aos interesses. Do negócio das armas, que é o que, evidentemente, está em causa.
Mas em nenhum país a coisa ficou tão clara como em Espanha, o único, até ao momento, que levou ao Parlamento o embargo à venda de armas ao regime despótico e medieval de Riade. E aí, na hora da verdade, PP e PSOE, com a abstenção do Ciudadanos, chumbaram a proposta.
A notícia é desta semana de Natal: uma senhora, funcionária de um lar de idosos da Santa Casa da Misericórdia de Aveiro, viu decretada a penhora do subsídio de alimentação para liquidação de uma dívida de 8500 euros, como tanta outra gente vê penhorados os seus rendimentos pelas mesmas razões. Até aqui, nada de novo. Todos sabemos que circunstâncias destas são infelizmente cada vez mais frequentes. Sabemos que o endividamento é um dos maiores problemas do país. E das pessoas que o fazem… E sabemos que os credores têm direito a receber os seus créditos, mesmo que também saibamos que, muitas das vezes, a sua responsabilidade no crédito não é menor que a do devedor.
O que é novidade, insólito e mesmo surreal, é que, não recebendo a senhora subsídio de alimentação porque toma as refeições no lar de idosos onde trabalha, o agente de execução penhorou a refeição em espécie.
Não se sabe se o zeloso agente de execução tenciona ir diariamente à instituição de marmita na mão a tempo de retirar da boca da executada a sopa, o pão, o arroz, as batatas, o naco de carne ou a posta de peixe. Nem se tenciona depois ir a correr entregá-la ao credor, para que não arrefeça. Porque, requentada, perderá certamente valor, tornando mais difícil a recuperação da dívida.
Nesta semana de Natal já tínhamos imagens de fome, dor, terror e morte a cruzarem-se com imagens de felicidade, beleza e sonho, que nos impingem tudo e o crédito para o comprar. Faltava mesmo era qualquer coisa que cruzasse a mais alta imbecilidade com o mas baixo sentido de dignidade humana. É este o nosso mundo hipócrita, que nem uma pausa para Natal tem!
Não deixa de ser notável a forma como a imprensa, e a comunicação social em geral, compactua com mais uma cínica demonstração de hipocrisia da política europeia, e ocidental. Viu-se como jornais e televisões difundiram a fotografia (em cima) com aqueles hipócritas todas supostamente a encabeçar a mega manifestação de Paris. Nenhum dos inúmeros correspondentes presentes em Paris fez o menor reparo à cabeça da manifestação. Nenhum manifestou o menor indício de não ter visto ninguém daquela gente na manifestação; o máximo que se soube foi que os chefes de estado e de governo presentes, entre eles como se sabe Passos Coelho, cuja ausência da primeira fila foi objecto dos mais diversos comentários, por razões de segurança, teriam apenas percorrido 200 metros na manifestação. Nada mais!
Sabe-se agora, porque alguém no Le Monde - o proprietário da fotografia oficial que todo o mundo "comeu" - resolveu pôr cá fora a outra fotografia (em baixo), a que não mente, que os sérios e respeitáveis chefes de estado e de governo que se juntaram a Hollande (e a Merkel) participaram, não na manifestação, mas numa encenação. Que se limitaram a fechar uma rua para dela fazerem estúdio fotográfico...
Não fosse a dimensão da fraude e disser-se-ia que o fotoshop faria a mesma coisa por muito menos dinheiro. Que aquela é uma fotografia que sai bem cara aos contribuintes. Mas com fraudes não se deve brincar. Nem o Charlie o faria... Já a Marine Le Pen, mesmo perdida a rir, não deixará de levar isto bem a sério!
Temos o muito nosso hábito de transformar os mortos em pessoas perfeitas. Um tipo pode não ter sido lá grande coisa em vida, mas logo que morre passa a ser o melhor do mundo… É normalmente assim em Portugal, e a isso chama-se hipocrisia. Em que também não somos nada maus…
A morte de Mandela mostrou-nos que essa hipocrisia não é um exclusivo nacional, mas mostrou-nos também que nem no caso deste Homem ímpar deixamos os nossos créditos por mãos alheias. A unanimidade à volta de Mandela não é assim tão desprovida dessa hipocrisia. Por exemplo, foi bonito de ver o discurso de Obama, elevando Mandela à categoria de seu mentor, de exemplo no passado e de luz para o futuro. Mas Mandela manteve-se proscrito nos Estados Unidos até 2008, foi mesmo até então considerado terrorista…
Também o Presidente Cavaco - que ultrapassa o ridículo - e o primeiro-ministro Passos, não pouparam nos encómios, deixando a ideia que também em Portugal se não fugia à unanimidade em volta desta que é uma das maiores figuras da História Contemporânea. Tem sido no entanto recordada uma das últimas iniciativas em sede de plenário da ONU contra o regime do apartheid, em 1987, numa votação em que se pedia a libertação de Nelson Mandela, onde o governo presidido por Cavaco levou Portugal a votar contra, ao lado dos Estados Unidos, de Regan, e do Reino Unido, de Tatcher.
Ouvido sobre assunto, o actual ministro dos negócios estrangeiros engasgou-se - mas isso já é costume em Rui Machete – acabando por se limitar a invocar a sinceridade dos sentimentos manifestados agora pelo governo português. Mais refinadas foram as declarações de João de Deus Pinheiro, ministro dos negócios estrangeiros (MNE) daquele governo de Cavaco, para quem a decisão teria sido de um qualquer director geral. Dele – MNE – não tinha sido e que Cavaco não tinha tido nada a ver com aquilo. Que o que importava relevar era o papel do agora Presidente da República no fim do apartheid na África do Sul, vejam só.
Não é apenas nas suas condições económicas e sociais que o país atingiu a degradação máxima. A situação calamitosa do país mede-se ainda, e provavelmente com mais precisão, pela degradação moral e ética a que chegou.
A perda de soberania que o resgate arrastou não explica tudo, nem nada que se pareça. Perder soberania não tem que implicar a perda de dignidade. Nem sequer do direito ao respeito!
Infelizmente somos governados por gente que não percebe ou não quis perceber isto, gente que em vez do tronco direito e cabeça bem levantada prefere a posição de cócoras. Gente que irá morrer sem perceber que, quanto mais servis, mais desprezados. Como se tem visto de Bruxelas e Berlim e como entra agora pelos olhos dentro em relação a Angola!
Quando se perde o respeito, perdem-se todos os valores de referência moral e ética e é a demagogia e a hipocrisia que passam a dominar as relações sociais e políticas.
Para fazermos uma ideia da hipocrisia instalada no país peguemos apenas em dois dos casos mais relevantes da semana que hoje termina: chamemos-lhe o caso Rui Machete e a subvenção vitalícia dos políticos ou, com mais rigor, dos que exerceram cargos políticos de poder.
Não é para voltar a referir incorrecções factuais, nem sequer eventuais comportamentos criminosos do incrivelmente ainda ministro dos negócios estrangeiros. É apenas para dar nota da ausência do PCP nas críticas ao escabroso pedido de desculpas diplomáticas a Angola. Toda a oposição condenou – e atacou fortemente - o ministro. À excepção do PCP!
Na penosa audição da passada terça-feira o PCP conseguiu a proeza de interrogar o ministro sem uma única pergunta sobre o caso angolano. Em semana de prémios Nobel, este seria um sério candidato ao prémio Nobel da hipocrisia!
Deve dizer-se em abono da verdade que o PCP não esteve sozinho nesta sua atitude. Também Maria de Belém achou que deveria aproveitar a presença do ministro, não para o questionar sobre o que ali o trazia, mas sim sobre a lei orgânica do ministério…
Depois da hiper-hipocrisia de Paulo Portas no final da semana anterior, quando ao lado de Maria Luís Albuquerque garantia que não havia mais austeridade nenhuma, o PSD deixou o CDS sozinho a falar do corte das pensões de sobrevivência, já conhecido pela TSU das viúvas onde, de resto, hipocrisia e demagogia foram coisas que não faltaram, com Paulo Portas a dar exemplos de pensões de 4 mil euros e Motas Soares a subir ainda a mais a parada, para 5 mil euros. Logo que deu por isso, que ficava com a cara colada àquele corte, o CDS tira da manga o corte nas subvenções vitalícias dos políticos.
Estas subvenções, que nada de contributivo têm, vão parar aos bolsos de toda a gente que desempenhou cargos políticos, que acumulam com os seus vencimentos de banqueiros, de presidentes de empresas públicas, ou de administradores das principais empresas privadas que, por via das PPP ou das rendas negociadas com o Estado, têm lugar á mesa do orçamento. E, naturalmente, só tinham que ter sido integralmente cortadas antes do primeiro corte nas pensões!
O CDS, logo seguido do PSD - que agora está de olho bem aberto para não se deixar comer pelo parceiro de coligação – sugeriu um corte de 15%, se bem que logo tenha avançado que, correcto mesmo, seria cortá-lo na totalidade. Repare-se que se trata de CDS e PSD, nada de governo, do governo que entretanto ia alimentando as fugas de informação que importavam.
Entretanto, o PS que nunca está de acordo com nada do que venha daqueles lados, veio logo a correr dizer que achava muito bem, que era justo … o corte de 15%. Antes que a ideia de acabar com esta marmelada avance, vamos já segurar isto por aqui!
Manuel Alegre saiu de imediato para o campo de batalha: era o que faltava, isto é um hediondo ataque aos políticos. E, também aqui, o PCP se lhe junta…
Não há dúvida: estamos entregues à bicharada. Quer dizer, à hipocrisia.
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