Nunca o mundo nunca foi tão global, nunca as culturas mais se cruzaram. Deslocamos-nos como nunca entre todas as partes do mundo. Viajamos como nunca, a negociar, ou a experimentar cheiros e sabores antes distantes e inacessíveis. Estamos ligados uns aos outros por todo o planeta, à distância de um clique.
Pois ... O absurdo tem destas coisas. Quando mais próximos estamos uns dos outros mais barreiras colocamos a esse encontro. Mais rejeitamos o outro, com outra cor de pele, com outra religião, com outra história, com outra cultura.
Na verdade já não rejeitam apenas. Odeiam numa repugnante purga de ódio!
Não lhes importa que os imigrantes venham para, mal pagos e mal tratados, cumprir tarefas a que os portugueses não querem meter mãos. Não lhes importa que sejam eles a aguentar o país. Que, sem essa mão de obra, simplesmente não pudesse haver crescimento económico. Não lhes importa que os números confirmem, de forma indesmentível, como contribuem para a sustentação da Segurança Social. E para o pagamento das actuais pensões, mas também das futuras. Não lhes importa que, sem quem venha de fora, e se fixe, a população portuguesa caia para 6 milhões de criaturas no espaço de um século. Mais de 40%!
Na verdade não lhes importa a viabilidade económica e demográfica do país. Importa-lhes espalhar ódio, como se viu nesta semana que está a acabar.
Não. Não é para regular. É para surfar a onda das percepções que, à revelia dos dados oficiais, é lançada por André Ventura ... e Passos Coelho. Que, também esta semana, fez da apresentação de um livro palco para, em nova aparição no nevoeiro, voltar a falar dos imigrantes como a grande ameaça aos portugueses.
A lei de caça à burca, logo a seguir, é apenas a cereja no topo. Ninguém em Portugal conhece ninguém que use burca. Não é um problema porque simplesmente não existe. Mas foi tratado com a urgência, a pompa e a circunstância de um grande problema. É uma lei feita à medida, que não serve para nada que não seja dar fogo à peça. À narrativa do absurdo!
Sociólogos, politólogos e, mais ainda, tudólogos, dizem-nos que o eleitorado português mudou completamente nos últimos anos. Mas será que mudou assim tanto? Não terão sido outras coisas que mudaram?
O manifesto ódio ao imigrante que cresceu na sociedade portuguesa, e que por estes dias, na sequência da fiscalização da Lei dos Estrangeiros por parte do Tribunal Constitucional, e do desembarque dos migrantes marroquinos - daquele barco de madeira, de 5 metros, que aportou à praia da Boca do Rio, em Vila do Bispo -, se tornou avassalador, atingiria esta dimensão se não tivesse sido cirurgicamente cultivado através de partilhas das coisas mais absurdas nas redes sociais, onde se "informa" uma vasta legião de incultos, mas também muito ditos letrados?
Por que é que este país "informado" nas redes sociais, se revela altamente chocado com a pressão dos imigrantes sobre a habitação, o custo de vida e os serviços públicos; mas já não fica incomodado com os nómadas digitais (com regimes fiscais em que pagam metade dos impostos da classe média portuguesa), com os titulares de vistos gold das mais diversas proveniências, quando - esses sim - tomam conta da oferta de habitação, desencadeiam a hiper-inflação nos preços dos restaurantes, e disputam serviços públicos?
Por que é que este país "informado" nas redes sociais se revolta contra a concessão da nacionalidade a quem cá vem fazer o que os portugueses já não fazem, para si nem para os outros, mas nada se incomoda com a nacionalidade atribuída - vendida por um punhado de euros, dólares, reais ou rublos - a quem nada contribui para o futuro do país e, tendo dinheiro, não tem, e dificilmente poderá vir a ter, alguma ligação emocional a Portugal?
Estas últimas questões são meramente retóricas, para ajudar a responder à primeira. Sem as redes sociais e as suas dinâmicas a projecção do(s) sectarismo(s) não seria a mesma. Projectados e instalados no eleitorado passam rapidamente a produto com mercado!
O eleitorado não mudou. O que mudou foi o que foi posto à disposição do eleitorado!
Há uns anos nem o eleitorado tinha à disposição um espaço político de direita, extrema e radical; nem a extrema direita tinha espaço para ocupar. As redes sociais quebraram esta espécie de círculo vicioso.
A partir daí tudo mudou. Mercado gera mercado. E concorrência, que alarga mercado.
André Ventura foi um caso de sucesso, vindo do PSD, como do PSD vieram quase todos os que o acompanham, quase todos por "desemprego". Vindo de um longo jejum de poder, e ele acedendo com frágeis minorias, enquanto ao lado o Chega engordava, o PSD no governo passou a apostar naquele mercado.
Por razões de sobrevivência, mas também porque as bases do partido - é mais o que une as bases do PSD e do Chega, do que aquilo que as separa - contaminaram a cúpula.
As bases do PSD nunca foram muito diferentes do que são hoje. Com ou sem Chega. As elites é que mudaram muito. E não foi apenas no PSD. Foi em todo o lado.
Os especialistas em demografia vinham apontando o ano de 2025 como o momento de viragem, o ano em que a população em idade activa (entre os 20 e os 64 anos) deixaria de aumentar, para se entrar numa trajectória de redução. Seria assim na generalidade dos países desenvolvidos, diziam há muito.
O Relatório anual do mercado de trabalho (Employment outlook 2025) da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE), hoje conhecido, confirma essa viragem, e aponta para diminuição generalizada da população activa de 8%, num horizonte de 35 anos.
Porém, para Portugal, o Relatório aponta uma perda três vezes superior. A população activa em Portugal cairá 23%!
Estamos a falar de economia. E de um dos mais graves problemas da economia portuguesa. É, por isso, bom que se continue a falar de imigração. Convinha era que passasse a ser entre gente que saiba o que diz!
E que se lembre de James Carville, o estratega de Bil Clinton, nos idos de 1992: "é a economia, estúpido"!
Assinalou-se ontem, dia 18, o dia internacional das migrações. Em Portugal, quando não se fala de outra coisa, não se deu por isso.
Diz-se que a execução do PRR não avança por falta de mão de obra. Que a construção do novo aeroporto ficará em causa. Auscultam-se as empresas e a maior dificuldade que revelam - não, não é o IRC - é a falta de mão de obra. O equilíbrio financeiro da Segurança Social é mantido precisamente pela contribuição dos imigrantes.
E no entanto o país debate os perigos da imigração. Na saúde, na educação, na segurança ...
O Barómetro da imigração realizado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, dado a conhecer há dois dias, dá conta que os portugueses acham que há imigrantes a mais. Têm até a percepção que são já 40% da população. Na verdade, a totalidade de estrangeiros com autorização de residência em Portugal é de 1.164.606 pessoas (dados de 31-10-2024), pelo que os verdadeiros imigrantes não serão muito mais de 10%.
Por muito que as estatísticas e relatórios de segurança o desmintam em absoluto, os portugueses - dois terços, conforme aquele barómetro - acreditam que os imigrantes contribuem para um aumento da criminalidade.
O país que precisa de centenas de milhares de imigrantes, é o mesmo que acha que eles já são de mais. O país que é tido por um dos mais seguros do mundo, é o mesmo que tem percepção de insegurança.
É o novo fenómeno da percepção, introduzido pela extrema direita através do extraordinário instrumento de manipulação de sensações que são as redes sociais. Introduzida em vastos segmentos da sociedade, a percepção passa a comandar largos sectores de eleitorado. A partir daí é a democracia a funcionar em regime de auto-destruição.
Primeiro são os próprios partidos da extrema direita a capitalizar a percepção. E a entrar nos diversos eleitorados. Depois, lideranças políticas frágeis, e a mera visão instrumental do voto, desencadeiam a reacção à perda de eleitorado, e transformam a percepção em realidade política.
É a isto que estamos a assistir em Portugal. Em grande parte do mundo também não é muito diferente.
No entanto o "pantomineiro-mor" do país troca esta realidade pela narrativa que lhe alimenta a pantominice, e marca uma grande manifestação para Lisboa contra a imigração. Freta autocarros por todo o país, e arregimenta todas as estruturas para este objectivo principal do partido. Disse-se por aí que quem não apresentasse resultados ficaria com contas para ajustar.
E ontem lá se encontraram todos - gente que não sabia o que ali estava a fazer, gente que também tinha sido emigrante, "mas dos bons, nada destes que para cá vêm", e gente que sabia bem ao que vinha, como um tal Mário Machado com o "seu" 1143 - percorrendo precisamente o eixo da capital mais marcado pelas mais degradantes imagens da exploração associada à imigração.
O pantomineiro tinha à sua volta câmaras e microfones que bastassem. Para elas dizia que não, que não era nada contra a imigração, enquanto descia pela Almirante Reis debaixo da gritaria "nem mais um, nem mais um". Novo microfone à frente e, de novo, não, aquilo era apenas contra a desregulação, contra a "bandalheira" das portas abertas.
As tais que, dizem os empresários deste país, a fecharem-se, seria devastador!
Pantominice é isto. Também lhe chamam populismo, mas isto é mais propriamente pantominice!