Feito lerdinho, o governo entendeu a aclaração que o Tibunal Constitucional não fez. Feito lerdinho, disse que quem recebeu, recebeu. Se recebeu menos, paciência... Afinal é mesmo isso que se pretende!
O governo não é só lerdinho. É também chico esperto... Aproveitou bem a abébia do Tribunal Constitucional, dispensando-o da rectroactividade. É no que dá a inconstiucuinalidade com prazo. E a ingratidão!
Quando há uma semana foi conhecida a inconstitucionalidade de algumas medidas do Orçamento do Estado em vigor, a mais relevante das quais relativa aos cortes de salários na função pública, o governo, para quem a decisão não podia representar qualquer surpresa, de tão avisado que tinha sido, decidiu partir para o confronto violento com o Tribunal Constitucional.
Apostou na clássica estratégia de vitimização e pretendeu transmitir a ideia de que esta tinha sido a última gota, a que fez transbordar o copo da legitimidade que, não tendo de todo, pretende fazer crer que tem. O governo, e em especial o primeiro-ministro, quis dizer que não tolera mais obstáculos à sua governação. Quis esticar a corda, deixando a ideia que não se importa nada que ela parta.
O governo partiu para este confronto institucional, para esta guerra aberta com outro órgão de soberania, não porque aquela tenha sido a última gota que levou o copo a transbordar, mas apenas porque entende que as circunstâncias lhe são agora favoráveis, transformando em oportunidade a ameaça da inevitável crise no PS.
Este não deixa no entanto de ser o lado circunstancial de dois dados estruturais da governação de Passos Coelho: o desprezo pela Constituição e os mecanismos da sua política de ajustamento.
Logo que lhe cheirou a poder Passos Coelho anunciou a intenção de rever a Constituição. Foi, como se percebeu, aconselhado a desistir, mas isso só lhe fez crescer o desprezo. Também os mecanismos da sua política orçamental e de combate ao défice nos fazem recuar a esse tempo da campanha eleitoral de há três anos. Dizia então Passos Coelho que o combate ao défice se faria a partir do ataque às gorduras do Estado.
Não foi isso que fez, não que não encontrasse gorduras, mas porque não quis enfrentar os interesses que elas alimentam. Não se conhecem gorduras do Estado que tivessem sido cortadas, mesmo que identificadas pela Troika. Não tocou nos municípios, fez de conta que cortava alguma coisa mexendo apenas nas freguesias. Não tocou nas rendas da energia. De Institutos e Fundações cedo ficamos conversados. E a reforma do Estado ficou-se pelo inenarrável relatório de Portas… As imposições da Troika acabaram por se ficar pelos cortes de salários, pensões e serviços públicos e pela desregulação. Em especial das relações de trabalho e da legislação laboral…
O governo utilizou invariavelmente apenas e só dois instrumentos de ajustamento orçamental: cortes – salários, pensões e prestações sociais – e aumento de impostos, incluindo autênticos saques feitos aos contribuintes, a que depois chamam de eficiência fiscal. Partindo da fantasiada premissa de que os portugueses viviam acima das suas possibilidades, o governo impôs cortes nos salários da função pública justificando-os com o facto de os privados já terem ajustado, para depois criar um ciclo vicioso – com o sector privado a tomar os salários do público por referência contratual – de abaixamento generalizado dos salários.
A guerra aberta com o Tribunal Constitucional pode até ser servida como a gota de água que fez transbordar o copo. Mas não é mais do que a confissão explícita do falhanço da acção governativa no programa de ajustamento. Quando o governo e a vasta expressão mediática que o sustenta dizem que o Tribunal Constitucional só permite aumentar impostos, impedindo os cortes na despesa, não estão a fazer outra coisa que precisamente enfatizar que o governo não sabe, ou não quer, reduzir o défice orçamental se não cortando salários e aumentando impostos!
Há 35 anos Sá Carneiro teve um sonho e deu-lhe uma formulação: um presidente, um governo, uma maioria. Morreu sem o conseguir, nas circunstâncias conhecidas, precisamente quando procurava acrescentar o presidente ao governo que liderava e à maioria da AD que o suportava. Mas o sonho ficou e, mais do que num desafio, transformou-se na obsessão do centro-direita. Quis a História – ou o destino, não sei bem quem hei-de culpar – que o sonho se concretizasse nas pessoas de Passos Coelho e Cavaco, e em gente como Duarte Marques, Hugo Soares, Carlos Abreu Amorim...
Alcançado o velho sonho, logo a inédita trilogia lançou mãos à obra, e foi por aí fora como se não houvesse limites à sua fúria de recuperar o tempo perdido. Aos primeiros obstáculos não ligou muito, afinal não passavam de avisos. Nada que devesse ser levado a sério...
Até que, lá pelo oitavo aviso, já com alguma mossa na sua repetida fúria violadora, se lembram que, afinal, um presidente, um governo e uma maioria não é suficiente. Não chega, é preciso ainda acrescentar-lhe o Tribunal Constitucional!
Foi aqui que ontem chegou o nosso visionário primeiro-ministro, a uma nova formulação que passará agora a constituir o sonho da direita – já desligada do centro – e a nova ambição que Passos Coelho, como um dia Sá Carneiro - agora às voltas no túmulo -, deixará para o futuro: um presidente, um governo, uma maioria e um Tribunal Constitucional!
Tornou-se ensurdecedor o silêncio do Presidente da República a propósito da intolerável escalada da afronta ao Tribunal Constitucional que o governo desencadeou. Assistir ao que se está a passar, sem sequer um ponto de ordem do Presidente, diz bem do ponto sem retorno a que Cavaco chegou.
É ele o principal responsável por o governo ter ultrapassado todas as linhas. Porque justamente lhe permitiu que as fosse sucessivamente pisando. Porque, ao romper com o seu juramento de cumprir e fazer cumprir a Constituição, não só se demitiu das suas mais altas responsabilidades, como abriu as cancelas a um governo verdadeiramente insaciável quando se trata de atacar as condições de vida dos portugueses. Foi Cavaco quem, promulgando os sucessivos orçamentos sem requerer a sua fiscalização preventiva, criou este estado de guerra aberta entre dois órgãos de soberania.
Não é de agora que Cavaco é refém de si próprio, das suas ambiguidades e dos seus jogos de interesse. Há muito que teceu as malhas em que se enredou, e por isso este é apenas mais um entre os silêncios, as omissões e as demissões que o deveriam envergonhar, e que fazem dele o mais impopular, e o menos respeitado, presidente da História da democracia portuguesa.
Claro que, daqui a uns tempos, alguém se encarregará de fazer de mais um deplorável momento do seu mandato um marco de serenidade, bom senso e sentido de Estado. Já estamos habituados a isso, e não iremos ficar nada surpreendidos quando ouvirmos explicar que Cavaco agora não reage porque, se o fizesse, daria argumentos ao governo para abrir uma crise política que iria levar à sua demissão, numa altura em que o país nada ganharia com isso.
Mas então ninguém acrescentará que Cavaco, para além de refém de si próprio, há muito que é também refém deste governo autoritário e obcecado na missão de empobrecer e destruir o país!
Quatro dias depois de conhecido o acórdão do Tribunal Constitucional – que deixava passar umas e impedia outras das muitas medidas que toda a gente, governo incluído, sabia que eram inconstitucionais – em vez de começarmos a conhecer as alternativas que o governo deveria ter preparado, assistimos a um processo de dramatização com propósitos que, sendo escuros, estão claros.
Evidentemente que o governo tinha um plano B. O pano A é o de mandar barro à parede do Constitucional. É o B que contém as medidas a implementar, sempre sob o espectro da inevitabilidade.
Só que desta vez Seguro não lhe abriu apenas mais uma janela de oportunidade, escancarou-lhe as janelas e as portas todas. Por isso Passos Coelho empata, pede aclarações, deixa andar e dramatiza. Conta para isso, como sempre, com a imprensa, particularmente com a especializada, que invariavelmente faz do Tribunal Constitucional o mais odioso órgão de soberania. Que se substitui ao executivo, que bloqueia o país, que não permite cortes na despesa e obriga o governo a aumentar de impostos. Que impedem o crescimento que estava lançado e manda o país de regresso à banca rota… Falam de novo resgate – seguem a Bíblia, o Financial Times, que de imediato lembrou a persistência dos “riscos de um novo empréstimo de resgate”- quando até aqui entregavam os foguetes ao governo e iam depois apanhar as canas da saída limpa. Apregoavam o sucesso do programa, o milagre económico, o crescimento mesmo quando não existia e tantas outras maravilhas.
A coisa está hoje tão preta que nem os números do desemprego – não importa agora se há emigração, limpeza de ficheiros, desistência de procura de emprego ou formação disfarçada de emprego – hoje apresentados merecem qualquer nota. Fosse há uma semana atrás e ninguém calaria tamanho feito, cantado por toda a parte, tanto quanto ajudassem o engenho e a arte…
Como se sabia, o orçamento em vigor, como sucedera nos anteriores, contém diversas inconstitucionalidades. Faltava apenas que o Tribunal Constitucional as confirmasse…
Conforme se esperava confirmou hoje três delas – outras, como por exemplo a CES, ficam ainda à espera – entre as quais os cortes salariais na função pública.
O primeiro-ministro, ameaçando o Tribunal Constitucional e pelo caminho todos nós, garantira que iria aumentar impostos. Com o IRS a bater no tecto, já só o IVA está à mão… Rebenta com a minúscula réstia de esperança na espécie de crescimento que alimenta o milagre económico que o Pires de Lima anda a vender… Traz de volta a recessão, que não fora embora sem deixar na porta um Volto Já …
Resta a Passos e Portas a tentação enorme, tão enorme quanto o enorme aumento de impostos do sucesso da sua governação, de tirar partido imediato da situação no PS. Uma tentação que Seguro, hoje no mais desastrado dos seus dias de uma semana miserável - que, depois de completamente perdido no meio da moção de censura do PC, culminaria na patética reacção à decisão do Tribunal Constitucional – torna certamente irresistível.
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