João Almeida acaba de fazer mais uma demonstração da sua condição de grande ciclista mundial, ao ganhar a Volta ao País Basco, uma das maiores competições do World Tour, logo a seguir às três grandes Voltas.
Andou sempre pelos primeiros lugares, antes de vestir a camisola amarela na passada quinta-feira, ao ganhar a quarta etapa, entre Beasain e Markina-Xemein, uma das mais decisivas, com sete contagens de montanha. Não mais a largou, e confirmou-a hoje vencendo, com autoridade e classe - atacando a quase 40 quilómetros da meta -, a última etapa, em Eibar.
É a maior vitória de João Almeida num competição por etapas, e a terceira, depois de ganhar a Volta ao Luxemburgo, e a Volta à Polónia, em 2001. E a confirmação do corredor das Caldas da Rainha no topo do ciclismo mundial.
Terminou a Volta ao Algarve em bicicleta, já uma clássica da abertura da época do ciclismo internacional.
Cá esteve a nata do ciclismo mundial. Dos melhores dos melhores apenas Pogaçar faltou. Todos os outros cá estiveram.
Começou mal, com problemas no final da primeira etapa, quando na bifurcação da chegada a Lagos, parte do pelotão seguiu por um lado, e a outra por outro. A maior parte seguiu pelo trajecto errado, e a organização anulou a etapa. Não foi bonito, manchou a corrida, mas ficaram ainda quatro etapas para todos os gostos - chegada ao sprint, chegada em montanha e contra-relógio.
Na chegada a Tavira, na antepenúltima etapa, na sexta-feira, uma queda mandou Iuri Leitão, o nosso campeão olímpico e europeu (de pista), para fora da corrida.
Na montanha, no Alto da Fóia, brilharam os ciclistas da UAE, os portugueses João Almeida (2º) e António Morgado (4º), e o dinamarquês Jan Christen (1º). No contra-relógio final de hoje, com chegada no Alto do Malhão, brilharam os da Visma, com Vingegaard (1º) e Wout Van Aert (2º).
João Almeida partiu para o contra-relógio com 20 segundos de vantagem sobre Vingegaard, que não foram suficientes. O português foi quinto na etapa, gastou mais 32 segundos - com uma grande recuperação na subida final ao Alto do Malhão - e acabou na segunda posição da geral, atrás do galáctico Vingegaard.
António Morgado,campeão nacional de contra-relógio, afundou-se e saiu do top ten, fechado precisamente pelo dinamarquês Jan Christen, o camisola amarela à partida. E onde também Roglic não coube.
Ao segundo dia da segunda visita aos Alpes - se bem que, nesta semana, à excepção de terça-feira, a seguir ao dia de descanso, na 16ª etapa, quando Philipsen ganhou pela terceira vez, igualando Girmay, impedido de disputar o sprint por via de uma queda já próximo da meta, todos os dias foram corridos em montanha - mas na realidade o verdadeiro primeiro dia na alta montanha alpina, se é que já o não estava, o Tour ficou decidido. Em aberto estão a disputa do segundo lugar (entre Vingegaard e Evenepoel) e a do quarto (entre João Almeida e Mikel Landa).
Pogacar tinha dito que esta 19ª etapa - 145 quilómetros entre Embrum e Isola 2000, com duas subidas de categoria especial e uma de primeira categoria, na meta - é que era a etapa rainha deste Tour, e não aquela 15ª, nos Pirenéus, que vencera categoricamente.
Estão bem uma para a outra, ambas duríssimas. Esta de hoje tinha a particularidade de passar no ponto mais alto deste Tour, passando dos 2800 metros de altitude em La Bonette, na última das duas contagens de montanha de categoria especial, e penúltima da etapa. Para não deixar dúvidas, Pogacar ganhou-as ambas, e esta ainda de forma mais clara e espectacular.
Era dia de trepadores e foi um bom naipe deles a tomar a iniciativa da fuga do dia: Jorgenson e Kelderman (da Visma, de Vingegaard),Simon Yates(da Jayco),Hindley(Red Bull – BORA ), Cristián Rodriguez (Arkéa), e Carapaz (EF Education), bastante activo nesta fase final do Tour, que ganhara (pela primeira vez no Tour) a penúltima etapa (17ª), e que estava já em condições para discutir a classificação da montanha.
Andaram sempre na frente, e Carapaz, acabou mesmo por assegurar virtualmente a camisola das bolinhas vermelhas quando foi o primeiro em La Bonette, em que a pontuação duplicava. E juntos chegaram aos últimos 16 quilómetros da subida ao alto de Isola 2000, com uma vantagem de 4,5 minutos sobre o grupo que, lá atrás, a Emirates comandava. Controlando a distância para a frente, e endurecendo a corrida para deixar para trás muita gente.
O grupo da frente começou a desfazer-se logo nos primeiros metros da subida, e apenas Jorgenson, Simon Yates e Carapaz, cada um por si, resistiam. Jorgenson foi quem teve mais pernas, e atacou para ganhar a etapa, lá em cima.
Na perseguição, a Emirates ia gastando os seus cartuchos. Depois do grande trabalho de Nils Politt e, depois, de Adam Yates, Marc Soler, depois de uma fugaz passagem pela frente, encostou. Era a vez de João Almeida. E foi. Faltavam oito quilómetros para a meta.
Só que Pogacar, que não consegue deixar de atacar, quis ganhar a etapa, e foi embora, sem esperar pelo trabalho do João. E sem resposta. Vingegaard e Evenepoel reagiram. Fizeram o que puderam, e não foi pouco, mesmo que o dinamarquês não tenha podido mais que seguir na roda do belga.
Pogacar ia comendo - engolindo - tempo aos da frente, e deixando-os um a um para trás. Em seis quilómetros despachou toda a gente. Na meta, levantou os braços e fez uma vénia!
Vingegaard, sexto na etapa, agradeceu e cumprimentou Evenepoel. E depois chorou. João Almeida chegou logo atrás deles, 18 segundos depois. Mas com Mikel Landa, de quem não se conseguiu livrar, na roda. Carlos Rodriguez chegaria 2 minutos depois de ambos, e deverá ter ficado afastado da luta pelo quarto lugar que João Almeida conserva nos 27 segundos de vantagem sobre Landa.
Glória aos vencedores e honra aos vencidos. Glória para Pogacar e honra para Vingegaard. E para Evenepoel. Disse-nos a primeira das duas visitas do Tour aos Pirenéus, na 14ª etapa, de 151,9 quilómetros, entre Pau-Saint-Lary-Soulan Pla d'Adet. A etapa do mítico Tourmalet ainda nos Pirenéus franceses. Desta vez ficou a duas montanhas da meta, e nada deixou decidido na etapa. Nem no Tour, que ainda tem muito mais para dar.
A novidade que, surpreendentemente não é tanto assim nos dias que correm, é que o Covid voltou a fazer vítimas. Depois de Michael Morkov, hoje foi a vez de Pidcock, da Ineos. Outra, ainda ontem, foi Ayuso que desfalcou a poderosa equipa da Emirates. Mesmo que dificilmente se lhe possa chamar um corredor de equipa.
No alto do Tourmalet, Laskano, da Movistar, foi o primeiro,à frente do grupo onde seguia Rui Costa, com o grupo do camisola amarela a quase 4 minutos. Seguiu-se uma descida, em que os corredores chegaram a ultrapassar os 100 Km/hora e, depois, uma montanha de 2ª categoria, mas sempre dura. No grupo de Pogacar, sempre com a Emirates a fazer as despesas da corrida, pelo pedal do alemão Nils Politt.
A 8,5 quilómetros da meta, na derradeia subida, foi a vez de João Almeida endurecer a corrida. Viu-se depois Pogacar, que parecia querer resguardar-se, falar com Adam Yates. Que, poucos segundos depois, atacou.
Era a jogada decisiva da Emirates. Não poderia ser outro a fazê-lo. O inglês estava suficientemente atrasado para provocar resposta dos rivais de Pogacar, e atacou a 7 quilómetros da meta, fazendo de imediato a diferença, e chegando-se a Ben Healy, da Education First (belo nome para uma equipa profissional), o único que restava na frente da corrida.
A 4,5 quilómetros da meta - nada a ver com o ataque aos 42 quilómetros da antevéspera - Pogcar atacou. Vingegaard tentou responder, mas não pôde. Tal como Remco Evenepoel. Rapidamente se chegou a Yates, e ambos deixaram de imediato Healy nas covas. Vingegaard respondeu, no seu passo mas, desta vez, não conseguiu recuperar. Na meta foi segundo, 39 segundos atrás de Pogacar, mas o suficiente para "roubar" o segundo lugar da geral a Evenepoel, ficando os três mais firmes nos lugares do pódio.
João Almeida, com mais uma etapa notável, foi 12º, perdendo 12 dos vinte segundos de vantagem sobre Carlos Rodriguez, mas segurando, por 8 segundos, o quarto lugar na geral.
Amanhã há mais. O último dia de Pirenéus será ainda mais difícil e poderá, ou não, dar mais do mesmo. João Almeida dependerá muito do trabalho que for destinado no apoio a Pogacar. Se nada de anormal acontecer, um lugar no pódio estará cada vez mais difícil. Se aquilo a que for obrigado no suporte a Pogacar não o condenar a pior, o quarto lugar da geral, que segura por 8 segundos na disputa com Carlos Rodriguez, o líder da Ineos, poderá ser seu. Até porque tem a seu favor o contra-relógio final, no Mónaco e em Nice.
Mas ainda faltam os Alpes. Para ele e para todos os outros!
Ia o Tour na quarta etapa na última vez que aqui o trouxe, não imaginando então que, feita História na anterior, com a primeira vitória do africano Girmay, se voltaria a fazer logo na seguinte, com a vitória de Cavendish em Saint Voulbas.
A 35ª no Tour, com que bateu o record de Merckx, que havia igualado, que há muito perseguia e que era o seu único objectivo para esta última participação na prova, projectada para o ano passado, mas reconsiderada depois do abandono a que então fora forçado.
Foi depois tempo dos sprinters - que não mais do velho corredor britânico - e especialmente de Girmay, o africano da Eritreia que corre pela equipa do Intermarché, que ganhou mais duas etapas (na oitava), e hoje mesmo (na 12ª), que lhe dá já uma grande vantagem, porventura decisiva, na liderança da classificação por pontos. Na camisola verde, que não mais despiu desde essa quarta etapa.
Mas também do primeiro dos dois contra-relógios da prova, na quinta etapa, que Remco Evenepoel venceu, com 12 segundos de vantagem sobre Pogacar, ainda e sempre de amarelo. Onde João Almeida foi oitavo, com mais 57 segundos, subindo então para sexto na geral.
Foi tempo, no domingo, de uma etapa - a nona - de grande grau de dificulade, com 14 troços em gravilha, a modernidade que substitui as velhas etapas nos pavés. E do primeiro dia de descanso, na segunda-feira.
Ontem, no maciço central, correu-se a 11ª etapa, entre Évaux-les-Bains-Le Lioran (211.0 km) toda ela de montanha... e louca. Onde a formação da Emirates fez forte investimento, quiçá com o objectivo de arrumar com o Tour logo ali, ainda antes dos Pirenéus. E dos Alpes. E do contra-relógio final, na chegada a Nice.
Fruto desse investimento ou - talvez melhor - para o justificar, Pogacar atacou na antepenúltima subida, ainda a 32 quilómetros da meta. Ninguém lhe conseguiu responder, e foi amealhando segundos de vantagem. Chegaram a ser mais de quarenta. Mas de repente fraquejou - provavelmente, pelo que se viu no final da etapa, a comer desenfreadamente, e também porque fora possível perceber o desespero com a pedira apoio ao carro que nunca chegou - por, novamente, falha na alimentação. E a perseguição de Vingegaard, a princípio feita com Roglic, que caiu na descida e ficou para trás, acabou por resultar na penúltima subida. Pogacar ainda foi primeiro nessa meta de montanha - o que lhe valeria a liderança também na classificação da montanha - mas foi já ao sprint, com o vencedor dos dois últimos Tours a parecer desinteressado de o disputar.
A partir daí fizeram as descidas, e as duas últimas subidas, a par. E em evidente colaboração para cavar a diferença para os restantes, em especial para Evenepoel e Roglic, até próximo da meta. Diferença que, com a meta à vista e a vitória na etapa para decidir, acabaram por queimar e deixar cair para meros 25 segundos.
Não foi só aí que se percebeu que a estratégia da equipa ruíra à falta de condição física de Pogacar. Foi na própria discussão da vitória, quando Vingegaard, que normalmente perderia sempre no sprint para o rival, mesmo que sempre na frente, e em condição desvantajosa para o sprint final, arrancou para a meta e ganhou (na foto).
Fora assim - com um erro no capítulo alimentar, e com erros na estratégia de ataque - que, no ano passado, Pogacar fora derrotado. Ontem, porventura pela sua condição decorrente da grave queda no País Basco, Vingegaard apenas ganhou a etapa. Não ganhou tempo, mas ganhou força mental. E está ainda por saber o o que isso possa vir a valer lá mais para a frente.
Evenepoel e Roglic perderam apenas os referidos 25 segundos, mantendo-os segundo e quarto na geral. João Almeida voltou a fazer uma etapa ao seu (alto) nível. Foi sexto, subiu ao quinto lugar, por troca com o Carlos Rodriguez, e com o bónus de ver o colega Ayuso afundar-se, e cair para o nono lugar da classificação.
Hoje subiu a quarto. Porque, a 10 quilómetros da meta, o infeliz (já ontem caíra, sozinho, naquela última descida) Roglic viu-se envolvido numa queda das grandes, e cortou a meta com cerca de 2,5 minutos de atraso, e um ombro esfacelado. Se estiver em condições de amanhã se apresentar à partida, dificilmente Roglic terá agora possibilidades de disputar um lugar no pódio.
Os Pirenéus vêm aí, já depois de amanhã. E desconfio que terão muito para contar.
A 18ª etapa da Vuelta, hoje corrida pelas montanhas das Astúrias, era a última de alta montanha. Das três que faltam apenas a de sábado, a penúltima, uma daquelas tipo montanha russa de que Rui Costa gosta, poderá alterar, e ainda assim muito pouco, do pouco que pode mudar na classificação.
Sendo uma etapa de elevado grau de dificuldade, e tendo praticamente decidido a Vuelta, foi mais que uma etapa de confirmação da classe de Evenepoel, que entrou em fuga 12 quilómetros depois da partida, correu na frente os restantes 167, deixou para trás quem quis, e quando quis, ganhou as três classificações de montanha e garantiu a respectiva camisola, e chegou isolado à meta, com quase 5 minutos de vantagem para o segundo (Caruso) e 10 para os principais da classificação geral. Foi uma lição de vida!
Foi, antes de mais, uma lição de ciclismo de Evenepoel. Mas também uma lição de vida. Esteve para abandonar depois da "catástrofe" do Tourmalet. Disse que foi a mulher que lhe pediu que não o fizesse e, por ela, continuou. E voltou a dar espectáculo como nenhum outro, e a ganhar. Ontem parecia ter desaparecido, depois de ter entrado em mais um fuga. Não desapareceu, apenas percebeu que não valia a pena investir nela. Que não era a certa, e mais valia resguardar-se para hoje. Para ganhar pela terceira vez, e demonstrar que é, física e mentalmente, um campeão.
Mas foi acima de tudo uma lição de vida de Vingegaard. A novela da Jumbo, com Kuss, Vingegaard e Roglic como personagens, tem aqui sido bastamente relatada. Quando, ontem, a juntar ao que já se passara na véspera, depois de deixar a liderança de Kuss presa apenas por 8 segundos, Vingegaard disse que gostaria que o seu companheiro ganhasse a Vuelta, a declaração soou ao mais vil da hipocrisia. Kuss só não acabara de perder a "vermelha" por ter tido a ajuda de Mikel Landa, e por em cima da meta o ter passado para assegurar os pontos da bonificação pelo terceiro lugar. Pediu desculpa ao corredor espanhol, disse-lhe que tinha vergonha do que acabara de lhe fazer, mas que a isso tinha sido obrigado pelos colegas de equipa.
É difícil intrepretar de outra forma aquela declaração do vencedor do Tour. Mas é possível acreditar que se arrependeu. Mas também que a direcção da equipa, porventura com receios de danos de imagem, tenha sido obrigada a reconhecer que os ataques de Roglic e Vingegaard a Kus passavam a ser intoleráveis.
Fosse pelo que fosse, a verdade é que, hoje, o campeão dinamarquês redimiu-se. A apenas 8 segundos do seu colega de equipa, hoje teve tudo para lhe ganhar essa diferença e até muito mais. E renunciou sempre. Na última subida, nos últimos 4 quilómetros, a mais de 10 minutos de Evenepoel, o grupo dos primeiros estava reduzido a seis corredores. Eles os três, e ainda os espanhóis Ayuso, Mikel Landa e Enric Mas, os três a disputar o quarto lugar da geral, separados por 30 segundos.
Todos atacaram, para se atacarem. A cada ataque de cada um deles, bastaria a Vingegaard responder para deixar Kuss para trás. Nunca o fez. Pelo contrário manteve o ritmo, impediu as tentações de Roglic, segurou sempre Kuss e acabou sempre a anular as tentativas dos espanhóis. Mas fez mais: nos últimos metros abrandou e deixou que os outros cinco se fizessem à meta, entregando 9 segundos ao seu colega. Para lhe dar a tranquilidade de 17 segundos de vantagem na liderança!
Não tenho a certeza que tenha sido bonito, mas foi o final feliz de uma novela que não estava a ser bonita. E Kuss vai certamente ganhar a Vuelta. Como merece. Como é justo. Não é o ciclista mais forte desta Vuelta, onde só faltou Pogacar para estarem todos os melhores do mundo. Evenepoel - traído pela súbita quebra no Tourmalet, mas isso é ciclismo -, Roglic e Vinguegaard, são mais fortes. Sem dúvida. Mas, por tudo o que tem feito por eles ao longo de anos, Kuss merecia a gratidão que tardou em ser demonstrada.
E só não consigo dizer que foi bonito porque Jonas Vingegaard deu, mas quis mostrar que estava a dar. Bonito é dar sem exibir. Já Roglic, nem isso.
João Almeida hoje não esteve nos melhores dias. Descolou do grupo dos primeiros ainda na penúltima subida, para depois fazer o que já é habitual - ir recuperando lugares. Perdeu cerca de 1 minuto, um pouco menos, para os seis primeiros. E manteve naturalmente o 9º lugar na geral, de onde dificilmente sairá.
Tinha aqui escrito que Vingegaard e Roglic aguardariam ansiosamente um ataque de Ayuso, o quarto da geral e o primeiro fora da Jumbo para, nas últimas altas montanhas desta semana final, atacarem a liderança de Kuss. Queria com isso dizer que tinha por certo que ambos queriam ganhar a Vuelta, mas que, nem eles, nem a direcção da Jumbo, teriam "lata" para atacar directamente o colega. O fiel escudeiro que tanto tem trabalhado para as suas vitórias, e que inesperadamente vira chegar a sua vez de ganhar.
Estava enganado. Nem Ayuso, nem qualquer outro adversário, lhes deram essa oportunidade, e precisaram de outros pretextos. E até de pretexto nenhum.
Ontem, na 16ª etapa, entre Liencres Playa e Bejes lá no alto de La Hermida, bastou a Vingegaard o pretexto de homenagear o colega Van Hooydonck, vítima nesse mesmo dia de um ataque cardíaco, seguido de despiste, quando seguia ao volante do seu carro, na Bélgica, e em crítico estado de saúde. Ganha-la-ia de qualquer forma, sem necessitar de deixar Kuss em dificuldades. Mas não. Atacou a sério, para ganhar a etapa e atacar a liderança. Ganhou mais de um minuto a Kuss e a Roglic, ficando a apenas 29 segundos da vermelha, e retirando o segundo lugar ao esloveno.
Hoje, na etapa mais dura da Vuelta, com a meta no mítico L`Angliru, já nem precisaram de pretexto algum. Simplesmente seguiam os três na frente, e iriam repetir o inédito feito do Tourmalet. Mas não. E desta vez foi Roglic. Atacou e Vinguegaard seguiu-o, deixando Kuss para trás. Era o dia do aniversário do americano, mas nem isso lhe valeu.
Valeu-lhe o espanhol Mikel Landa, um adversário da Bahrein, que se lhe juntou e o levou na roda até à meta, onde Roglic fora primeiro, sem discussão com Vingegaard (também era só o que faltava). kuss até acabou por ser terceiro, repetindo o feito da equipa no Tourmalet. Mas foi um adversário que lhe deu a prenda de anos que os colegas lhe negaram, e que lhe permitiu até manter a camisola vermelha, agora presa por apenas 8 segundos. Para Vingegaard. Para Roglic, é mais um minuto. Nada que não resolvam certamente amanhã, o último dia de alta montanha.
Dizem, da equipa, que os três gozam de liberdade total para fazerem o que quiserem na corrida. Afinal há liberdade na ditadura que a Jumbo instalou nesta Vuelta. Não há é gratidão. Nem sequer respeito.
Também na UAE não funciona essa coisa a que se chama equipa. Já se tinha visto noutras ocasiões, em muitas delas com João Almeida com razões de queixa. Hoje foi ao contrário. Foi o português, com mais uma excelente prestação - sexto na etapa, a 58 segundos de Roglic - que se esteve nas tintas para Ayuso e para Soler. O jovem espanhol ainda se aguentou. Foi nono na etapa e segurou o quarto lugar da geral, se bem que já muito apertado por Landa, a apenas 16 segundos. Soler afundou-se, e caiu de sexto, a apenas 3 minutos de Kuss, para 13º, a 22. E foi justamente à sua conta que João Almeida, a acabar a Vuelta ao seu melhor nível (Kuss deve-lhe a ele não ter perdido já ontem a liderança, pois foi ele a "dar sapatada" que reduziu a vantagem de Vingegaard) subiu a nono, e praticamente garantiu um lugar no top 10.
Ah... E Evenepoel já não é notícia. Mas ainda tem que defender amanhã o primeiro lugar da classificação da montanha.
Está a completar-se a segunda semana da Vuelta, provavelmente a mais espectacular das três grandes competições do ciclismo mundial. Por ser a última do calendário mas, acima de tudo, por ser normalmente a mais aberta. Esta, deste ano, por ser a mais recheada de estrelas: à excepção de Pogacar, conta com todas as estrelas maiores do universo do ciclismo, o que não aconteceu no Giro nem no Tour.
Lá estão Vinguegard, campeão do Tour, Roglic, vencedor do Giro, Remco Evenepoel, campeão do mundo, que este ano ainda não tinha participado em nenhuma das grandes voltas do World Tur (impedido no Giro, por ter testado positivo ao Covid já em competição) e que era tido pelo único ciclista capaz de bater os três grandes (Vinguegard, Pogacar e Roglic) e, claro, a armada completa (apenas sem Yates) da Emirates, com João Almeida, Ayuso e Soler. Completa também (e que armada!) a da Jumbo.
Uma fuga na primeira semana acabou por catapultar para os dois primeiros lugares, e logo com a respeitável vantagem na ordem dos dos minutos, dois corredores de respeito, mas fora da lista dos principais favoritos: o americano Kuss, da Jumbo, e o espanhol Soler, da Emirates.
De Kuss, sabia-se que é um trepador de eleição e, provavelmente, o maior gregário do mundo. Ajudou Roglic a ganhar o Giro, e foi decisivo na vitória de Vinguegaard no Tour. Não se sabia do que seria capaz no papel, e com a responsabilidade, de candidato a ganhar uma grande Volta. De Soler sabe-se que é um bom ciclista, sempre capaz de andar nos primeiros lugares, mas incapaz de grandes rasgos.
O primeiro grande teste a estes dois estava marcado para o contra-relógio de Valladolid, na passada terça-feira, onde Evenepoel, o recém campeão do mundo da especialidade, era o grande favorito. Mas foi apenas segundo, atrás de Filipe Ganna, também já campeão mundial, e pouco à frente de Roglic e de João Almeida. Que fez um contra-relógio fabuloso, ao seu melhor nível, subindo então a sexto da geral, num top 10 que incluía ainda Nelson Oliveira.
Kuss e Soler equivaleram-se, e defenderam bem as suas posições. Para o americano da Jumbo, contando com o melhor colectivo da actualidade, de longe e praticamente imbatível, e com a esperada gratidão de Roglic e Vinguegard - era a hora de lhe retribuírem tudo o que tem feito por um e outro - o desempenho no contra-relógio foi como que o carimbo na lista de principais candidatos à vitória final. O resto fez ele próprio nos dias que se seguiram, demonstrando sempre condições para estar na frente, sem vacilar.
Andavam as coisas assim, com Kuss de vermelho, Soler ali perto, e Vinguegaard, Roglic, João Almeida, Ayuso e Evenepoel todos juntos logo a seguir, até à etapa de ontem, com subida do Tourmalet, já depois da do Aubisque. Aí mudou tudo. Ou quase.
Evenepoel desfaleceu logo no início da etapa, não se sabe bem por quê, a não ser que são coisas que acontecem no ciclismo. A João Almeida não aconteceu a mesma coisa, nem o resultado foi o mesmo, mas também foi alvo de um dia não. O campeão belga nunca mais se encontrou e perdeu quase meia hora. O João, doente, com dores no corpo, uma infecção na garganta e uma noite sem dormir, também ficou para trás logo no início. Mas foi o que é: um campeão e um guerreiro. Fez do resto da etapa, nas subidas do Aubisque e do Turmalet, uma sucessão de "almeidadas", e acabou no 15º lugar na etapa, limitando as perdas a 6 minutos e 47 segundos para Vinguegaard, o primeiro lá no alto. À frente de Kuss, que voltava a dizer que quer, e merece, ganhar a Vuelta, e de Roglic.
Os três da Jumbo, que ficaram também os três primeiros da geral. Se não é inédito, anda lá perto. Inédito é, seguramente, a mesma equipa ganhar no mesmo ano as três grandes Voltas!
João Almeida, apesar do esforço épico, caiu para o 10º lugar na geral.
João Almeida ainda foi capaz de responder ontem mesmo ao infortúnio. Evenepoel fê-lo hoje. Afastado da luta pelos primeiros lugares com os 28 minutos perdidos ontem, hoje teve liberdade para atacar. E fê-lo de imediato. Nada melhor que matar o fantasma logo na primeira oportunidade!
E foi um espectáculo. Só no ciclismo podem acontecer coisas destas. Num dia, a derrota inapelável. No seguinte, uma exibição de esplendor na estrada. Foi para a frente logo no início, subiu na frente tudo o que foi montanha que encontrou. Bardet ainda o acompanhou, talvez mais de 100 quilómetros, sempre na sua roda. A vantagem ia aumentando, quilómetro a quilómetro. Passou os 8 minutos para o grupo dos favoritos, onde os restantes 7 dos 10 primeiros não conseguiam sequer revoltar-se contra a ditadura da Jumbo, imposta pelos três do pódio.
Ayuso ainda tentou, uma ou duas vezes. E pareceu até que a ideia agradava quer a Roglic quer a Vinguegaard. Sem "moral" para atacarem Kuss, a resposta a um terceiro seria o pretexto ideal. O americano sabia disso, nunca desarmou, e tudo ficava na mesma.
A 4 quilómetros lá do alto de Larra-Belagua nem foi preciso Evenepoel atacar. Bardet acabaria por ceder e lá seguiu sozinho o campeão belga até á meta, cortada em lágrimas, com mais de um minuto de vantagem sobre o francês, e mais de 8 sobre o grupo dos primeiros da geral, onde João Almeida se incluía, mantendo o seu 10º lugar, a 8:39 de Kuss, mas a mais de 6 minutos do quinto, Enric Mas.
A Vuelta, a mais democrática das três grandes corridas do mundo é, desta vez, uma ditadura. Da Jumbo. A uma semana do fim, é a mais fechada de todas. Evanepoel deverá ainda ganhar mais uma ou duas etapas. Segurará certamente a camisola da montanha, que hoje arrebatou a Vinguegaard. Mas nem no top 10 entrará.
A Ayuso, quarto, e primeiro não Jumbo, estará agora reservado o papel principal. Se, prisioneiro da armada da Jumbo, se resignar ao seu quarto lugar, Kuss já ganhou. Se atacar para chegar ao pódio, apenas abre a Vinguegaard e a Roglic oportunidade para atacarem o colega de equipa. Sabem que não o devem fazer. Mas que o querem, já se percebeu!
Terminou o Giro, com a etapa de consagração, em Roma, onde o veteraníssimo Cavendish, agora na Astana, foi o primeiro a cortar a meta, depois de um sprint preparado por ... Geraint Thomas, o seu velho amigo, da Ineos.
Raro, e bonito. É sempre bonito ver do que a amizade é capaz, mesmo nas competições desportivas ao mais alto nível. Talvez não houvesse forma mais bonita para fechar esta edição do Giro!
A classificação geral tinha ficado ontem definida, naquele extraordinário contra-relógio que deixou Roglic no primeiro lugar, com 14 segundos de vantagem sobre Thomas, e 1 minuto e 1 segundo sobre João Almeida. Que ganhou a classificação da juventude, e conquistou o seu primeiro pódio numa grande volta. E o segundo para o nosso país, 44 anos depois de Joaquim Agostinho o ter feito, pela primeira vez. Então na Volta a França, em 1979.
É um grande resultado do jovem ciclista das Caldas. E, aos 24 anos, a confirmação de que é já um dos grandes nomes do ciclismo mundial. E que tem tempo e condições para vir a ser ainda melhor entre os melhores!
João Almeida este muito bem, não se tendo ressentido do dia de ontem, na duríssima etapa de hoje do Giro. A penúltima, em plenos Dolomitas, e porventura a mais dura desta edição, com 184 quilómetros e seis contagens de montanha. Que só não foi espectacular porque a montanha (e em especial o mítico Passo Giao) pariu um rato. Tudo por causa da brutal crono-escalada de amanhã, que obrigou os favoritos a pouparem-se. Mesmo assim bastaram as últimas centenas de metros, antes da meta de Tre Cime de Lavaredo, lá no alto, para não lhe faltar emoção.
A corrida não foi muito diferente do que se poderia esperar, com a Jumbo, de Roglic, sempre tranquila no meio do pelotão, e a Ineos, de Thomas, a controlá-la. Sem que ninguém quisesse atacá-la, nem quando mais uma grossa coluna de fugitivos chegou aos 10 minutos de vantagem, na frente.
No fim, da fuga, apenas resistiram o colombiano Santiago Buitrago, o vencedor lá no alto, e o canadiano Derek Gee, o eterno segundo deste Giro, cinco vezes segundo em etapas, segundo da classificação por pontos e segundo da montanha. O terceiro já foi Roglic.
O grupo dos favoritos chegou ao último quilómetro e meio reduzido a 8 ciclistas. João Almeida, há muito sem colegas de equipa no grupo - J Vine, claudicou ainda no Passo Giao, quando faltavam três contagens de montanha para o final - tomou a frente, e logo Roglic e Thomas lhe responderam. E contra-atacaram, deixando-o para trás. À campeão, João Almeida foi ainda buscá-los, ziguezagueando entre o público que tapava a estrada. Mas, ao contrário do esloveno, já não conseguiu responder ao ataque final do britânico, já em espaço vedado, nos últimos quatrocentos metros. Roglic, depois de inicialmente batido pelo ataque de Thomas, acabou por reagir e ultrapassá-lo em cima da linha de meta, arrecadando ainda os últimos três segundos da bonificação.
João Almeida acabou por perder 20 segundos, na linha do que ontem perdera, que no fim passaram a 23 para o esloveno. Mas a resposta que deu foi hoje melhor que a de ontem, mesmo que não tivesse conseguido evitar a ideia que os adversários estão mais fortes.
Ninguém sabe nada do que será o contra-relógio de amanhã, com uma subida de 7,5 quilómetros com 11% de pendente, depois dos 11 iniciais em plano. Sabe-se apenas que fará diferenças e que, quando os três primeiros cabem em menos de 1 minuto (59 segundos para Thomas e 33 para Roglic, é a desvantagem do João), decidirá o vencedor.
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