Depois do PS se ter fechado sobre si mesmo para o funeral da geringonça, foi a vez do governo de António Costa se fechar sobre si mesmo para o seu próprio funeral.
Sabe-se que as soluções governativas têm tanto menos espaço quanto menor for o espaço que abram para além das paredes do seu círculo político. Para constituir seu o novo governo António Costa não limitou sequer o campo de recrutamento ao seu próprio partido; limitou-o ao seu próprio governo. Que já dava mais a ideia de um corpo de segurança pessoal que propriamente um governo.
É um governo novo que nasce velho. Talvez seja por isso que é tao grande, o maior de sempre. Mas não certamente o de maior o futuro...
É finalmente oficial: a geringonça morreu. Não há geringonça 2.0!
Os últimos meses da legislatura já lhe davam pouca vida e a campanha eleitoral ligou-a à máquinaque, que os resultados de domingo desligaram. O que se passou nesta semana não foi mais que a gestão do anúncio oficial de uma morte certa, a lembrar o que sucede no desaparecimento dos caudilhos das ditaduras, em que guardam os cadáveres em arcas frigoríficas durante um certo tempo para acautelar reacções e evitar sarilhos.
No caso da morte da geringonça não foi necessário que esse tempo se prolongasse muito, uma semana de cinco dias chegou. Foi o tempo suficiente para que umas coisas extraordinárias fizessem caminho.
Acabadas as eleições, contados os votos – não todos, estranhamente, quase uma semana depois, ainda não estão contados os da emigração – analisam-se resultados e perspectiva-se o que estará para vir.
É o que sempre acontece na semana seguinte ao dia da festa dos votos - sim, apesar de tudo continua a ser dia de festa!
E nesta semana ninguém se poderá queixar de falta de tema, até porque os resultados deste domingo dão pano para mangas. Três novos partidos entraram pela primeira vez na Assembleia da República, fazendo aumentar para 10 (em mais de 40%) os partidos com assento parlamentar, e um, à segunda participação, quadruplicou a sua representação. Os dois partidos da anterior direita parlamentar – mais um que o outro - não evitaram um descalabro anunciado; e as coisas também não correram exactamente bem – também mais a um que a outro – aos parceiros do governo na geringonça.
Há sempre contas sobre quem ganhou e quem perdeu, quem votou em quem, e quem deixou de votar em quem, para passar a votar em quem… Há uma maioria para desenhar que sustente politicamente o governo, e há uma guerra de sucessão a vislumbrar-se à volta as feridas abertas nos principais partidos da direita.
No entanto houve gente para quem nenhum destes temas teve suficiente interesse. Houve gente para quem a única coisa digna da sua preocupação foi a eleição de uma afro-descendente, nascida em Bissau e cidadã portuguesa desde os oito anos, em cujos festejos surgiu uma bandeira da Guiné-Bissau. De tal forma que lançaram uma petição pública, ao que dizem já assinada por nove mil pessoas para, por impatriotismo, impedir a sua tomada de posse. Impatriotismo – evidentemente – denunciado pela presença da bandeira daquele país africano a que, como a todos os outros de língua portuguesa, chamamos irmão. Isto é imbecil, mas não é inocente … Nem novo. Nem novidade nos métodos, nem nos meios, nem nos fins…
Há quem não goste que as eleições sejam uma festa. E há, depois, gente que tem especial gosto em estragá-la!
Entre as muitas coisas extraordinárias que vamos ouvindo nestes dias, em que uns lambem as feridas, outros deitam foguetes, e outros ainda mostram o que não queriam, a mais extraordinária de todas diz assim: "andaram o tempo todo a pedir que se impedisse a maioria absoluta do PS, e agora não querem colaborar na solução que desejaram".
É mais ou menos isto que dizem certas pessoas do partido que vai formar governo, ao que nem o próprio António Costa conseguiu fugir. Pode até ser ideia sua, mas a quem a ouvimos repetir até à exaustão é precisamente àqueles que chamaram empecilhos àqueles com quem negociaram no passado, e voltam a ter que negociar.
Não está provado, antes pelo contrário, que corresponda à realidade. Mas não é isso que é extraordinário, antes pelo contrário, também. É normal e frequente que ideias às avessas da realidade façam carreira na política portuguesa. Já é extraordinário que o PS, ou certas pessoas do partido, achem que negociar uma formulação de entendimento é simplesmente deixar os interlocutores a abanar que sim com a cabeça a todas as letras do seu programa. O mais extraordinário, mesmo, é que o PS, ou essas certas pessoas do partido, achem que tem mesmo de ser assim porque eles é ganharam as eleições.
O que, bem vistas as coisas, não deixa de ser um dado novo...
À medida que os resultados eleitorais foram sendo analisados começamos a surpreender-nos com as circunstâncias em que pela primeira vez, no regime democrático, a extrema direita chega ao Parlamento. Tínhamos mais ou menos por adquirido que o extremismo radical de direita, racista e xenófobo, mesmo que com algum acolhimento em alguns sectores da sociedade portuguesa, nunca teria expressão política que alguma vez lhe permitisse eleger um deputado que fosse. Afinal teve, e mesmo descontando os exageros da excitação do momento, que até já prometem triplicar a votação daqui a quatro anos, e governar daqui a oito, a tendência será mais para subir que para descer.
Mas não é essa a maior surpresa. O mais surpreendente é que este é o resultado da transferência directa de votos do eleitorado comunista. Tal como tínhamos por adquirida a falta de expressão política e eleitoral da extrema direita, dávamos por garantida a inamovibilidade do voto comunista, e por blasfémia qualquer hipótese de transferência para a extrema direita fascista.
Sabíamos que esta transferência de votos, ainda há poucos anos de todo imprevisível e inaceitável, estava a acontecer em muitos pontos da Europa. Sabíamos que, em França, o crescimento da Frente Nacional de Marie Le Pen tinha justamente acontecido assim, com o voto, anteriormente comunista, dos operários das grandes cinturas industirais do país. Mas em Portugal era diferente. Em Portugal o Partido Comunista mantinha-se forte e socialmente activo, enquanto por toda a Europa os seus congéneres há muito que tinham desaparecido.
Dizem alguns analistas que o fenómeno se explica pela globalização, pela transferência das indústrias para outras regiões do globo e pela nova economia dos países mais desenvolvidos, fortemente terciarizada, que tirou referências e futuro às massas proletarizadas, lançando-as para os guetos das sociedades modernas.
Acredito que sim, que seja esta a explicação. Mas também aqui há em Portugal algumas diferenças, e algumas coisas não batem certo. É verdade que poderemos rever esse quadro em zonas sub-urbanas da grande Lisboa, onde essa transferência de voto teve evidente expressão. Mas já não vemos nada disso em muitas zonas do Alentejo, onde esse fenómeno foi igualmente notório.
E lá voltamos, mais que à especificidade portuguesa, à especificidade do Partido Comunista Português. Quando, nos anos 70 e 80, se pôs fora do chamado euro-comunismo, na realidade a aceitação expressa do jogo democrático ocidental, em rotura com a mãe pátria União Soviética, o PCP fechou-se na sua aldeia gaulesa e acrescentou alguns anos ao seu prazo de validade. E isso permitiu-lhe adaptar-se, com sucesso - diga-se - às novas circunstâncias do pós queda do muro de Berlim, enquanto os então poderosos Partidos Comunistas de Itália (de Enrico Berlinguer), de França (de Georges Marchais) ou de Espanha (de Santiago Carrillo) iam desapareceram sem praticamente deixar rasto.
Mais de 30 anos depois todos os outros, com a geringonça, o PCP entrou activamente no jogo, e abandonou o seu último reduto, lá deixando muitos dos seus fiéis, agora perdidos, sem referências e perante mentiras que sempre lhe haviam sido dadas por verdades. E vice-versa.
E esta é a outra face da moeda. A que tem o escudo bem português!
Enquanto por cá, entretidos a fazer (de) conta(s) à geringonça, vemos ressurgir Miguel Relvas, e logo a reclamar ar fresco para o partido - ao contrário do que poderia à primeira vista parecer, faz todo o sentido: os mais bafientos são os que mais precisam de ar fresco - no outro lado do Atlântico, Trump continua na sua espiral de loucura, ao ritmo da sua profunda ignorância e da sua ilimitada imbecilidade.
Depois de decidir retirar as tropas da Síria, abrindo espaço a Ancara para avançar sobre a minoria curda no território, isto é, de abandonar os curdos, que usou para derrotar o daesh e que deram a única vitória militar aos americanos dos últimos anos, à sua sorte e às mãos de Erdogan, Trump surge no Twitter - of course - a ameaçar que, se a Turquia intervier militarmente na Síria para além dos limites definidos pela sua própria, enorme e incomparável sabedoria, destruirá e aniquilará completamente a sua economia.
Os resultados eleitorais não deixaram ninguém surpreendido - nem Assunção Cristas - perfeitamente em linha com as sondagens, o que deixa o politiquês mais enfraquecido, a perder definitivamente uma das suas principais forças de expressão: "as sondagens valem o que valem".
Pois valem. E valem tanto que é melhor que a classe política comece a usar de alguma parcimónia no seu uso já que, pedir-lhes que cortem esta estafada e gasta expressão do seu discurso, é capaz de ser pedir muito.
Entraram três novas forças políticas para o Parlamento (a escrever, até daria para parecer que foi só uma: "Livre, Iniciativa Liberal Chega pela primeira vez ao Parlamento), onde a diversidade nunca foi tão grande: Dez! Agora são dez os partido com representação parlamentar, o que não deve deixar de ser saudado, mesmo que um não tenha nada para saudar.
Com o PS a oito deputados da maioria (deverá ficar assim, depois de apurados os resultados da emigração), e com o PAN a ficar-se por metade disso, dentro do exercício que aqui deixei há uma semana, os resultados confirmaram em absoluto os cenários improváveis em que Costa deixara as suas fichas. E que, com Jerónimo de Sousa a deixar logo ontem claro o que já era claro para qualquer observador, o empecilho do Bloco lá continua, incontornável.
Neste quadro, como referia nesse texto da semana passada, a noite de ontem haveria de mostrar quem tem "memória curta". Ou "capacidade de perdoar"... Catarina Martins, que pela ordem natural do protocolo surgiu primeiro, apressou-se a dizer que estava disponível para tudo, desde um amplo acordo estrutural para a legislatura à negociação pontual de cada medida sempre que necessário. Costa, magnânimo na vitória, mas rendido à evidência, prometeu ao povo, que gostou de geringonça, mais geringonça ainda. Agora cabem todos, venham todos à geringonça 2.0.
Parece fácil, não é?
O Bloco de Esquerda diz presente, sem rancores nem reservas. E sem empecilhar. E o PS diz venham todos, todos contam e ninguém empecilha.
Não me parece que seja bem assim e, na verdade, o que Catarina Martins disse - e viu-se pelo caderno de encargos - foi que a vingança se serve fria. E Costa apenas os chamou a todos para lhes dizer que conta com eles ... para executar o seu programa.
Chega hoje ao fim a campanha eleitoral. Amanhã é feriado, e dia de reflexão para os eleitores, todos nós. Não se percebe bem para que serve, nem que falta faz… mas está assim instituído.
E no domingo vamos votar. Alguns. Sabemos que muitos não vão. Uns por comodismo, outros por desinteresse e outros ainda porque desistiram… Uns porque não querem saber, tanto se lhes dá, outros porque acham que não vale a pena, que não muda nada. Uns que não se deixam encantar, e outros que se desencantaram…
Daí que estes sejam dias de apelo à participação eleitoral dos portugueses.
Votar – é um cliché, mas é assim - é um direito e um dever. Um direito que a nenhum cidadão pode ser negado, e um dever que nenhum cidadão deve negligenciar. Apenas isso. Sou contra o voto obrigatório. Por princípio, mas acima de tudo pela sua (im)praticabilidade.
O incumprimento legal tem, por definição, que ser sancionado. A lei tem que definir a sanção pelo seu incumprimento. A partir daqui imagine-se o que por aí viria … Deixo apenas à imaginação de cada um …
Não há por isso volta a dar, e os que não sentem a responsabilidade do voto não se vão aproximar das urnas. Por mais apelos, mais ou menos bacocos, que lhes dirijam, não vão!
Claro que é sempre conveniente lembrar a todos os que decidiram não votar, e aos que nem isso decidiram, porque mesmo essa decisão já seria uma maçada, que milhares de compatriotas lutaram décadas a fio por eleições livres. Que muitos deles morreram sem nunca poder chegar a votar. Que a democracia também é sua responsabilidade. E que não votar não significa estar contra nada, significa apenas não fazer nada contra tudo.
Mas, simplesmente votar, não resolve grande coisa. Não é por se deslocar à Assembleia de Voto e deixar uma cruz num quadrado qualquer, que alguém resolve o que quer que seja. Isso apenas baixaria a abstenção e deixaria porventura o ego do regime mais composto. Era batota. É preciso que o voto seja uma expressão informada e consciente de cidadania.
Por isso, se nada fizermos no domínio da educação cívica que acrescente cidadania às pessoas, o apelo ao voto dificilmente deixará de ser mais um gesto demagógico, idêntico a tantos outros de que estamos em grande parte fartos.
* A minha crónica de hoje na Cister FM
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