A Solverde, entendendo que os portugueses, para além do que então empobreceram, dos empregos que então perderam, e do que então tiveram de emigrar, teriam ainda que lhe pagar o impacto da crise económica de 2008 no seu negócio dos casinos, reclamou uma compensação ao Estado. Começou por reclamar 63 milhões de euros, valor que uma comissão arbitral viria a fixar em 15,5 milhões que, acrescido de juros, passou para 18 milhões de euros.
Em Setembro de 2024 o Estado recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que, em Janeiro, decidiu pela sua anulação. Decisão de que - soube-se hoje -, em 3 de Março, a Solverde recorreu para o Tribunal Constitucional (TC).
Em pleno terramoto Spinumviva/Solverde, Montenegro agarrou-se a esta decisão do STJ para reclamar "18 milhões de razões" em sua defesa. Pela mesma ordem de razão, sem que Montenegro disso tivesse dado conta, com o recurso para o TC, as "18 milhões de razões" voaram de imediato para parte incerta.
Pode ser que voltem a aparecer durante a campanha eleitoral. Pelo despudor a que se tem assistido é bem possível que sim!
O ministro Manuel Castro Almeida declarou "que se o PS vier declarar que reconhece ao Governo condições para executar o seu programa, se declarar que se considera satisfeito com os esclarecimentos dados e que retira a comissão parlamentar de inquérito, acho que há condições para a moção de confiança poder ser retirada".
Logo no governo alguém percebeu o despudor do trade off. E como já tinham percebido o pânico que vai no PS (ele é Adão e Silva, ele é Medina, ele é até Seguro), veio o ministro Leitão Amaro dizer que não senhor, que a a moção de confiança é irreversível, e que única forma que o PS tem de evitar eleições é votá-la favoravelmente.
Entretanto, nas primeiras páginas dos jornais de hoje, "Montenegro omite obras no duplex à Câmara Municipal de Lisboa" (CM); Governo acelera PPP em cinco hospitais (Público); "Governo de Montenegro viola lei do registo de interesses" (DN), "Montenegro infringiu regras de declaração de rendimentos" (Visão).
Isto não é uma crise política. Essa dura há anos. É uma crise esquizofrénica!
Soube-se desde o primeiro momento em que chegou ao poder que Montenegro, apesar de ter Passos Coelho por passado político, tinha em Cavaco o seu grande mentor. Fosse por escolha própria, fosse porque o próprio lho tenha sugerido, iria seguir-lhe todos os passos, independentemente da realidade.
Hoje, em plena crise política, não há dúvidas que o guião de Montenegro é o de Cavaco, de há mais de 30 anos.
Teimou em não esclarecer os imbróglios pessoais em que se meteu, colocando-se acima do escrutínio. Mesmo tendo-se deixado embrulhar em maior exposição que aquela a que Cavaco sempre se permitiu, indiferente aos factos, monta o cavalo do "para serem mais honestos do que eu têm que nascer duas vezes", agora selado para "só respondo a quem for mais honesto que eu".
Fala da família, e quer parecer defendê-la, mas foi ele que a entregou de bandeja na praça pública. Foi ele que, em vez de a proteger, a utilizou para se proteger. Usou a mulher, e os filhos, para, na empresa, esconder (pelo menos) a violação do dever de exclusividade. E usou um dos filhos na aquisição de apartamentos, circunstância em que usou de expedientes para fugir à declaração à Entidade da Transparência.
Salta por cima destes factos, como Cavaco sempre fugiu dos do BPN. Das acções, não cotadas, com que se encheu de dinheiro para credibilizar um dos maiores escândalos financeiros do país, que não tem assim tão poucos. E do da casa da Coelha, nas suas trocas e baldrocas.
Aqui chegado, à boca da crise em que seguiu o guião, quer ainda mais ser Cavaco. E transformar a saída para a crise num plebiscito.
O guião é claro: encharcar as televisões de ministros e deputados a vender a campanha de vitimização para, no fim, aparecer ele próprio na apoteose final. Devidamente intoxicado, ao povão resta sair a votar em massa num primeiro-ministro fazedor e empreendedor, que tem o país num brinquinho, que tudo, e a todos - menos a uma corja de malfeitores exclusivamente focada na sua destruição, a quem não há explicação que sirva - esclareceu.
Tudo esclarecido, sigamos em frente que nada disto merece que percamos mais tempo.
A democracia não é isto. Mas tem destas coisas, e pode ser reduzida ao simples depósito de um boletim de voto numa urna por eleitores prévia e devidamente amestrados!
Como era fácil de prever, perante o cenário da Comissão de Inquérito, Luís Montenegro preferiu arriscar na moção de confiança, que mais não é que o "all in" em eleições antecipadas. Porque Marcelo não tem como fugir da dissolução do Parlamento.
E assim chegou ao fim a segunda moção de censura ao governo, em duas semanas. Num debate em que toda a oposição, da direita à esquerda, foi impiedosa para Luís Montenegro. Que, não o conseguiu disfarçar, sofreu a bom sofrer!
O país não precisava nada de voltar a eleições tão depressa. Parece óbvio que não as quer, e que irá penalizar quem entenda ser os responsáveis por este extemporâneo regresso às urnas. O que está longe de ser óbvio é quem vai responsabilizar. Luís Montenegro sai como o único responsável objectivo, mas isso de forma alguma significa que venha a ser essa a percepção que vingue!
Para apurar tudo, tirar tudo a limpo - leia-se fritar o primeiro-ministro todos os dias durante mais de seis meses - e, então sim, conhecido tudo o que falta saber - leia-se, daqui a sete ou oito meses, já depois das autárquicas, e com o Presidente da República atado de pés e mãos ao final de mandato - apresentar a moção de censura.
Como em tácticas ninguém bate Montenegro - a última que consta é a de abrir tantas contas bancárias quantas as necessárias, para que os seus saldos nunca passassem dos 41 mil euros, que escapavam à declaração à Entidade da Transparência - é bem provável que, entre a frigideira da Comissão de Inquérito, e a loiça toda partida na moção de confiança, venha a preferir a segunda.
O primeiro-ministro, na forma como conduziu este processo da sua empresa familiar, abriu uma crise política de graves consequências no funcionamento do sistema político.
Criou uma autêntica bola de neve que vem dar gás ao discurso populista, e a quem só se sente bem na política se esta for uma pocilga repleta de choldra e lama. E desembocou numa situação política insustentável, que o deputado Rui Tavares, do Livre, descreve (bem) nestes termos:
“O país está numa situação em que o Governo não teria uma moção de confiança aprovada - portanto, chumbaria uma moção de confiança -, mas qualquer moção de censura também chumba. E, portanto, estamos com um Governo que não está nem morto, nem vivo.”
Isto é, a falta de lucidez, e a falta estatura política de Luís Montenegro acabaram a dinamitar o sistema político, ao mesmo tempo, por dentro e por fora. Por fora, activando o radicalismo anti-democrático da extrema-direita; por dentro, rebentando com as válvulas de segurança do sistema.
Não é a Luís Montenegro que cabem todas as responsabilidades. Ele tem a do pecado original - foi ele, e por ele, que a situação aqui chegou - mas há mais responsáveis.
Desde logo o PCP, a apressar-se a anunciar a moção de censura apenas para garantir mais uns meses de sobrevivência. A cavar mais fundo o seu descrédito: um partido que se rege por decisões colectivas, conseguiu em menos de um quarto de hora, num sábado à noite, produzir aquela decisão.
E, claro, acima de todos, Pedro Nuno Santos. Em apenas trinta segundos o líder socialista anunciou mandar o Governo abaixo (se este apresentar uma moção de confiança); e manter o Governo em funções (inviabilizando a moção de censura que o PCP). Se Luís Montenegro fosse ainda tomado por algum laivo de decência, e decidisse submeter-se a uma moção de confiança, Pedro Nuno Santos cortou com essa possibilidade de decência.
É o regime na sua mais crua degenerescência.
Valha-lhe Francisco Assis: “Exige-se um esclarecimento: ou o Governo é sério e apresenta uma moção de confiança ou, caso contrário, o PS deve apresentar uma moção de censura.”
Montenegro surgiu ontem ao país, que ele próprio deixara em suspenso quando, com mais de 24 horas de antecedência, anunciara uma reunião extraordinária do Conselho de Ministros, seguida de uma comunicação ao país, pelas (con)sagradas oito da noite, a brindar com um copo cheio de truques.
Não foi uma comunicação ao país, foi um comício!
Não era disso que o país precisava. Não era de propaganda, de truques, de "mais família", de mais vitimização. Era de clareza, em nome da decência, tudo o que o país precisava.
Depois de se saber que a actividade da tal sua empresa familiar, independentemente das conhecidas ilegalidades ou outras desconformidades com as boas práticas, e até da nulidade de actos que conduziram à sua actual estrutura societária, se circunscrevia a avenças com um conjunto de empresas - entre elas a Solverde, com uma avença mensal de 4,5 mil euros, cuja actividade se centra numa concessão para a exploração de jogos de sorte e azar, em casinos e "on line", já negociada com o Estado por Luís Montenegro, no exercício da sua actividade de advogado, e que termina precisamente no final deste ano - o primeiro-ministro só tinha de, finalmente, ser claro.
Por trás da retórica que, para a oposição, nunca haverá esclarecimentos suficientes, Montenegro tem a consciência que há mesmo coisas para esclarecer. Sabe-o tão bem que foge a perguntas, escondendo-se em "comícios" e debates parlamentares atrás de truques que domina com alguma mestria.
Há muita coisa para esclarecer porque, na verdade, nada foi esclarecido. Mas há uma pergunta que é fundamental: com Montenegro nas funções de primeiro-ministro, teoricamente sem tempo, e eticamente impedido de produzir os serviços que a empresa vende, sem quadros (não é certamente com um advogado e um jurista, avençados pelo "ordenado mínimo" que a empresa presta serviços de tanta especifidade técnica, e com tamanho valor acrescentado) para o substituir, como é que a empresa presta esses serviços a clientes da dimensão dos que acabou por revelar, e pelos preços que foram conhecidos?
É difícil, a Montenegro ou a quem quer que seja, dar a resposta.
O problema - e daí, acredito eu, que a pergunta seja evitada e que ainda não tenha sido feita - é que a dificuldade da resposta abre a porta que ninguém quer abrir. Essa dá, escancarada, para não haver serviço algum a ser prestado, e estar a ser paga uma outra coisa qualquer. E fácil de ver!
Percebo que toda a gente queira manter essa porta fechada. E que o truque de Montenegro, a anunciar a meias tintas uma moção de confiança que nunca seria para avançar, fosse isso mesmo.
Não percebo que, à beira do precipício, o PCP tenha dado o passo em frente. Ao chegar-de de imediato à frente com o anúncio de uma moção de censura o PCP lançou a bóia de salvação ao PSD, e tornou-se no mais (in)suspeito guardião do regime. Mas o PCP é isso mesmo, uma coisa que hoje ninguém percebe.
Desconfio bem que, no entanto, aquela porta se não mantenha fechada assim por tanto tempo.
Ao final do dia, ontem, depois do Presidente Marcelo ter metido mãos à massa, obrigando Luís Montenegro a obrigar o secretário de Estado, Hernâni Dias lá apresentou a demissão. A contragosto Montenegro lá teve que aceitar a primeira baixa no seu governo. Sem falar, sem dizer nada...
Não é membro do governo, não é ministro, nem secretário de Estado, é consultor do Governo para esta lei em concreto. E, também como Hernâni Dias, não vê nesta acumulação de funções qualquer conflito de interesses. Exactamente tal e qual Luís Montenegro não viu, não via e continua a não ver!
O secretário de Estado do Ordenamento do Território, Hernâni Dias, já membro do governo, criou duas empresas que podem beneficiar com a nova Lei dos Solos, da tutela do Ministério a que pertence. E, como é fácil de perceber pela própria designação da Secretaria de Estado, das suas próprias funções governamentais.
É grave, claro que é. Mais, ainda, é que Montenegro não tenha uma palavra, ou uma acção, sobre o caso. Que deixe seguir a marcha, mandando às urtigas a ética e a moral que na oposição sempre apregoou. Ou que não perceba, ou finja não perceber, que não tem, nem ele nem já ninguém - já todos esgotaram os créditos todos -, espaço para proteger e defender os seus à margem dos princípios.
Todos. Até os que pudessem estar mesmo convencidos que seria o Chega a limpar isto. Depois das malas do deputado Miguel Arruda, e de tudo o que se tem sucedido, desses já não há. Só restam os da fé. Podem até continuar a ser muitos, mas apenas e só por fé!
Todos, menos o Almirante. Esse - claro! - esfrega as mãos de contente com isto tudo. Nunca nada é mau para todos!