Ontem, ao fim da tarde, recebi uma chamada do médico de família do meu pai.
- Como está o Sr Albino? - perguntou.
- Não está bem, está infectado com Covid - respondi.
- Pois eu sei. Por isso é que lhe estou a perguntar como está.
- Vi-o ontem pela janela da enfermaria, estava com oxigénio, mas pareceu-me estável e relativamente tranquilo. Falou comigo e com a minha irmã, nós falamos com ele, ouviu-nos perfeitamente e no fim despedimo-nos.
- Quando é que fez o teste?
- Fez ontem duas semanas!
- 15 dias, então - concluiu. Está curado, 90% das pessoas estão curadas depois desse tempo.
Achei isto estranho. Um indivíduo que não é tido por dever muito à simpatia, e que não é exactamente reconhecido por grande ligação aos doentes, estava a ligar-me para saber do estado de saúde do meu pai. Mas quis pensar que as pessoas nem sempre são o que delas se diz, e que o facto de sermos conhecidos poderia ter pesado na deferência. Que lhe agradeci, surpreendido, mas sem lhe dar grande crédito.
Esta manhã, pelas 9 horas, recebi uma chamada da Unidade de Saúde Pública do Oeste (não sei se a designação é mesmo esta, se não for é qualquer coisa do género):
- É familiar do Sr Albino Louro?
- Sim, sou filho!
- É para lhe dizer que o seu pai está curado!
Era a notícia que eu mais queria ouvir. Feliz, desliguei o telefone e liguei à minha irmã e às minhas filhas para lhes dar a boa nova, enquanto o meu pensamento voava para a chamada do final do dia de ontem. Afinal a opinião a que não tinha dado grande crédito estava certa, o tipo sabia o que estava a dizer.
Ao final da manhã recebi uma nova chamada, agora da Unidade de Saúde Pública de Alcobaça, a perguntarem pelo meu pai. Respondi: o meu pai está curado!
- Pois, é isso que temos aqui nos sistema, mas isso sobrepõe-se à informação que temos que está positivo - respondeu-me a senhora com a maior simpatia, e com evidente preocupação.
Trocamos mais algumas palavras, percebemos ambos que o registo "curado" não tinha qualquer sustentação. E a senhora enfermeira prometeu-me que iria investigar e que, tão rapidamente quanto lhe fosse possível, me daria conta do que teria passado.
Entretanto vinham-me chegando notícias do meu pai. Que estava mal, muito mal. Que poderia ser uma questão de horas, dificilmente de dias. Ao fim da tarde a senhora enfermeira, como prometido, ligou-me:
- O registo foi feito pelo médico de família do seu pai!
Disse-lhe que o meu pai estava a morrer. Deu-me os sentimentos, e pediu desculpa por tamanha monstruosidade. De que não tinha culpa nenhuma.
Desliguei o telefone, que voltou a tocar de imediato - o meu pai tinha acabado de falecer!
À dor e à angústia de perder o meu pai, juntou-se uma revolta como nunca tinha sentido. Quando médicos sofrem e lutam até à exaustão, para salvar vidas ou simplesmente para ajudar na morte, há um deles, indigno de ser um deles, que veste uma bata branca e coloca um estetoscópio ao pescoço para se limitar a ser um burocrata que coloca carimbos num papel qualquer, ou faz registos numa qualquer plataforma.
Sem o mínimo de humanidade, sem ponta de pudor, sem sombra de respeito pelo outro, e com irresponsabilidade máxima. Afinal este energúmeno que se diz médico não teve comigo qualquer acto de deferência. Limitou-se a usar-me para facilmente encontrar uma pista para a informação que ele devia profissionalmente procurar para fazer um palpite e cumprir assim a sua tarefa de reles burocrata.
Há gente que não se sabe como foi aproveitada para gente. Já nem digo para médico. Isso é com a Ordem dos Médicos. Ou com todos nós...
Estou de greve porque sou e serei sempre uma apaixonada pela minha profissão! E amor, paixão só rima com RESPEITO. E respeito é coisa que não se tem visto...
Estou de greve pelos Doentes! Que merecem uma medicina de excelência! Uma excelência que os sucessivos governos têm estado a destruir!
Estou de greve pelo meu hospital e pela minha cidade! Que merece um hospital de qualidade e profissionais motivados e com condições para fazer o seu trabalho
Estou de greve pelo meu país! Que construiu um SNS digno, justo, inigualável, e de reconhecimento internacional! Um SNS que está agora a ser vítima de um cruel homicídio!
Estou de greve pelas minhas FILHAS! Que têm direito a ter uma mãe... que é médica... e que trabalha no limite do risco... no limite do cansaço... no limite do abismo... onde o “erro” acontece...por condições que ultrapassam a dignidade humana e profissional! E essa mãe no final do dia... chega a casa...
Estou de greve pelas minhas FILHAS... que têm direito a cuidados de saúde no SNS!
Estou de greve pelos meus pais... pela minha avó!! Que espero que nunca sejam doentes, mas que seguramente um dia serão...
Estou de greve pelas minhas INTERNAS... que um dia serão especialistas... brilhantes especialistas... e que quero que continuem neste país, nesta cidade e neste hospital... e que um dia orientem os seus internos com o mesmo encanto e determinação que eu tento fazer... perpetuando um ciclo que faz da medicina uma profissão única de entrega e dedicação!
Estou de greve pelos meus professores, orientadores... que não mereciam assistir a esta degradação...
Estou de greve por todos os colegas... e pela nossa saúde... que todos os dias dão tudo o que podem pelos seus doentes... e que fazem diariamente tanto... com tão pouco! São o exemplo vivo que sim! Fazemos omeletes sem ovos!!
Estou de greve pelas horas que os doentes esperam numa sala de estar de urgência! Porque recuso-me a ser conivente com o trabalho médico não qualificado! E com a contratualização através de empresas, num arraste cíclico preverso.
Estou de greve porque estudei e continuo a estudar muito, com dedicação, entrega, paixão... E aprendi que o esforço e o trabalho devem ser reconhecidos!
Estou de greve porque SER MÉDICO não é uma profissão, é uma forma de ser e de estar! Mas não é uma escravatura...
Estou de greve porque estou farta de mentiras! Farta de desrespeito! Farta deste ministro e do que está a fazer ao SNS... e já agora farta deste jornalismo falso, manipulado e manipulador.
E também estou de greve porque o meu ordenado é uma miséria!! E não tenho pudor em afirmá-lo! Bem longe dos valores que querem passar para a opinião pública... bem longe MESMO!
Estou de greve porque sou médica de alma e coração... e às vezes já me falta a alma e o coração. E sim também me apetece bater com a porta e partir para o sector privado. Mas não vou porque ACREDITO NO SNS.
Estou de greve por MIM. Porque sou médica, mãe, filha, utente e cidadã!
ESTOU DE GREVE PELO MEU/NOSSO SNS
ESTOU DE GREVE PELA QUALIDADE DOS CUIDADOS DE SAÚDE!
ESTOU DE GREVE PORQUE ACREDITO!
ESTOU DE GREVE PORQUE TENHO DE ACREDITAR E SONHAR COM O RENASCER DO SNS...
... “E Sempre que um homem sonha... o mundo pula e avança...”
Paga mal e trata pior os médicos. Entrega-os a empresas de trabalho temporário, que lhes pagam como pagam a trabalhadores de limpeza, metendo o resto ao bolso. Empurra-os para a emigração, mas acha que o problema está na falta de médicos. Que há que formar mais médicos... Nas universidades privadas, evidentemente... Resolvem-se todos os problemas entregando ao ensino privado a formação de médicos!
Começaram por mandar os jovens emigrar, praticamente uma ordem de expulsão embrulhada numa embalagem com um rótulo paternalista que lhes ordenava que saíssem da sua zona de conforto e procurassem trabalho lá fora.
Começaram por dizer aos jovens que, viver num país que era o seu, era um luxo, e que a vida e o país não estava para luxos. Viver no seu país, na sua terra, com a sua família era um luxo a que se não podiam dar. Era viver acima das suas possibilidades!
Não restaram alternativas, e os jovens, a geração mais formada que o país alguma vez conhecera, começaram a sair. Às dezenas de milhar, ano após ano, sem que os que os mandavam embora percebessem, por mais que fossem os avisos, que estavam a mandar fora dinheiro, muito dinheiro que o país gastara na sua formação. Que estavam a gerar fortes desequilíbrios demográficos, e a pôr em causa a própria segurança social. Sem que percebessem que, assim, não eram só os jovens que não tinham futuro. Era também o país!
Foi por aqui que se iniciou o processo de destruição do país iniciado há quatro anos, numa política de terra queimada que queria fazer crer que, depois, sobre as cinzas, haveria de nascer um país novo, pujante, viçoso... Destruíram-se centenas de milhar de postos de trabalho, mandaram-se para a falência milhares de empresas e para o estrangeiro centenas de milhares de jovens. Venderam-se ao desbarato as melhores empresas nacionais, estratégicas e monopolistas, e empobreceu-se o país e os portugueses, que passaram a ganhar menos e a pagar mais. Mais impostos e mais pelas funções sociais do Estado, cada vez mais degradadas…
Propositadamente, confundiram-se reformas com cortes. Cortou-se indiscriminadamente em todas as funções do Estado, até as deixar inoperacionais. Por incompetência, na maior parte das vezes, mas também para as esvaziar e mais facilmente transferir para o domínio privado.
O que se passa na Saúde – e note-se que se fala do que dizem ser o mais competente dos ministros – é sintomático. Doentes morrem em macas dos bombeiros, á espera de atendimento nos corredores dos hospitais, sem camas. Nem médicos, numa roda-viva sem saber onde acudir, expostos à ira – e quantas vezes às agressões – de doentes e familiares, abandonados e mal pagos mas, acima de tudo desrespeitados por quem, criando o caos, se presta depois à calúnia, à demagogia e à mentira manipuladora.
E por isso médicos e enfermeiros de todas as idades juntam-se aos jovens e saem também do país. Já não são apenas jovens, e já não são apenas jovens enfermeiros acabados de formar. São médicos especializados, alguns deles já entre os 55 e os 65 anos. São famílias completas – pais e filhos – que, mais que sair, desistem do país. Trocam-no por outros, onde vão encontrar as condições de trabalho e de vida que cá lhe negam e a dignidade que por cá lhe roubaram. Vão ganhar cinco vezes mais, em França, no Reino Unido, na Bélgica ou na Alemanha. Sim, na União Europeia, onde evidentemente há países com visão estratégica, desejosos por receber quadros que lhes poupem 10,15, 20 ou mais anos em formação. Por cá nenhum valor é atribuído a todos esses anos de formação. Nem a esses nem a outros, porque o abandono de médicos especializados irá ainda fazer-se sentir na capacidade de formar os mais novos. Que por cá ainda ficarem…
Engana-se quem ache que nada mudou ao longo destes quatro anos. Mudou, mudou muita coisa. Tantas que ainda não demos por muitas delas…
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