Ninguém acredita que tão alto dignitário da Igreja Católica, um arcebispo, ignore que a Rússia que invadiu a Ucrânia, e a martiriza numa guerra sem tréguas - para a qual o Papa Francisco ontem, na sua mensagem de Natal, voltou a apelar à paz: "calem-se as armas na martirizada Ucrânia"- é um regime ultra-conservador e nacionalista de extrema-direita, apoiado pela cúpula de igreja ortodoxa russa, e que Putin, o inclemente ditador que a dirige com mão de ferro, financiou católicos militantes como Le Pen, Salvini e até o antigo seminarista André Ventura.
Ora, se não pode ser por ignorância própria, só pode ser exploração da ignorância dos outros. E isso não é nem mensagem, nem Natal. Muito menos é as duas juntas.
A mensagem de Natal do primeiro-ministro foi mais um exercício de optimismo. Do já conhecido irritante.
Mesmo irritante, diria que optimismo é eufemismo para afastamento da realidade. Irritante e duro.
Dir-se-á que o Natal é aquele período de dias em que tudo se pinta de cor de rosa, mesmo que o vermelho seja a cor dominante. E que as mensagens da quadra devem esquecer a dura realidade para dar espaço à utopia. Ainda há pouco, ao publicar o "Há 10 anos", confirmava que Passos Coelho fazia o mesmo. Que Sócrates fizera o mesmo, e por aí diante. Ou por aí atrás, vendendo-nos sempre um "país imaginário", em vez da realidade, sempre dura. Cavaco chegou até a chamar-lhe "oásis".
Nesse sentido para os governantes deste "país imaginário" Natal é todos dias. E António Costa nem é assim tão inovador...
Porém, para este governo, não é só Natal todos os dias. Todos os dias são também dias de mais casos e casinhos. Até no Natal. Desta vez é o da secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis que, soube-se agora, recebeu uma indemnização de 500 mil euros para abandonar o cargo de administradora executiva da TAP antes do final do mandato para, quatro meses depois, ser nomeada para a presidência da Navegação Aérea de Portugal (NAV).
Num "país imaginário" é bem possível que isto se ache normal. Foi destituída, e por isso indemnizada, da administração da TAP porque lá representava o então accionista Humberto Pedrosa, e por isso não podia representar o Estado. Que passou a poder representar na presidência da NAV, por acaso exactamente com a mesma tutela, a do Ministério das Infraestruturas. E até, mais apenas uns poucos meses depois, a integrar o governo.
O Presidente da República inicou a sua mensagem - ou será discurso? - de Ano Novo por onde o primeiro ministro, oito dias antes, havia terminado a sua, ou o seu, de Natal. António Costa sabia que não tinha opção - tinha mesmo de começar pelo parte amarga do ano, e só depois se poderia virar para a saborosa. Marcelo podia começar por onde quisesse, e começou mesmo pelo cor-de-rosa. Só depois chegou ao negro e, na sequência disso, ao único ponto - e que ponto! - que verdadeiramente distingue o seu discurso do de António Costa: o Estado. Para que serve, e ao serviço de quem deve estar!
E disse que o Estado existe para nos servir os cidadãos, assegurando-lhes os direitos fundamentais. É isso, e apenas isso, que justifica a sua existência, e não a satisfação de interesses particulares, corporativos, sindicais ou partidários.
Bem dito, sem dúvida. A sugerir que vem aí o veto à escabrosa lei do financiamento dos partidos. Ou a lembrar-nos que, horas antes, à saída do hospital, identificara o Serviço Nacional de Saúde como a grande conquista da democracia. O mesmo Serviço Nacional de Saúde que não quis, ao votar em 1979, então deputado do PPD, contra a respectiva lei de bases.
Um dos bloqueios ao nosso desenvolvimento, porventura a mãe de todos os bloqueios, é o funcionamento, e em especial o financiamento, dos partidos. O Natal dos partidos, como tão bem lhe chamou o Alexandre Homem Cristo, cai como sopa no mel na mensagem de Natal do primeiro-ministro!
Não se percebe muito bem para que servem as "mensagens de Natal" do primeiro-ministro, mas elas lá se sucedem, ano após ano.
A deste ano, a de ontem à noite, com um dia de Natal todo ele cheio de Presidente da República, se calhar até se percebe... E nisto de mensagens sabe-se que António Costa sabe-a toda: começou pelos incêndios, como desta vez não podia deixar de ser, e só depois passou para o ano saboroso, a que sabe ainda dar mais sabor, como convén no Natal.
Como convém nesta coisa da mensagem política, em especial na das figuras do topo da pirâmide, há sempre uma ideia mais forte, que sobressai para se tornar na ideia-chave. Às vezes, o que até nem é raro, cada analista escolhe a sua. Por mim fico-me na frase mais emblemática: "Chegou o tempo de vencer os bloqueios ao nosso desenvolvimento"!
Grande ideia, grande desafio. À António Costa, sem dúvida. O problema é que o António Costa desta declaração é o mesmo António Costa da maioria desses bloqueios. Como o saboroso ano de 2017 se fartou de confirmar!
A mensagem de Natal do primeiro-ministro (alguém me sabe dizer qual foi o efeito do apagão?) não surpreende pela novidade. Ainda há bem pouco tempo Sócrates fazia exactamente o mesmo, vendia-nos um país imaginário, que não existia em lado nenhum.
Mas francamente, o que isto me traz mesmo à memória é aquele ministro iraquiano, aqui há uns anos, em 2003: já a estátua do Sadam era arrastada pelas ruas e continuava a dizer que o inimigo estava a ser repelido e que a vitória era certa…
Na sua mensagem de Natal o primeiro-ministro enfatizou duas ideias: reformas estruturais e confiança!
São – curiosamente, ou talvez não – dois dos grandes calcanhares de Aquiles que são apontados aos seus primeiros seis meses de governação. O governo tem sido acusado de procurar dinheiro e de cortar em tudo o que mexe, sem mexer em nada do que deveria cortar, sem tocar nos intocáveis – PPP, por exemplo – e sem limpar as famosas gorduras do Estado. Ainda recentemente, como aqui se deu nota, depois de criadas expectativas elevadas à volta daquele domingo de trabalho extraordinário, a montanha pariria mais um rato. E, de reformas, ficamos na mesma!
E de, com isso, dizimar a última gota de confiança que eventualmente pudesse resistir. Com isso e com um discurso realista, é certo, mas nada galvanizante, como a mais que badalada e recente tese da emigração. Em apenas seis meses o país passou de um primeiro-ministro que negava e escondia a dura realidade para inventar raios de sol e de esperança, que não olhava a meios para puxar pela auto-estima nacional, para um outro que, com uma narrativa de verdade, é certo, não encontrava outra cor que o preto carregado para pintar o seu discurso.
O país passou de um primeiro-ministro que puxava pelo país e o rebocava alegremente para o abismo, para outro que parecia nada mais conseguir que observar, impotente, um país a desfazer-se em cacos pela ravina abaixo. A verdade que ambos minaram a confiança, a mola real do desenvolvimento. Um, porque não merecia o mínimo de crédito, nem sequer de respeito, e outro porque, apesar de respeitável, não dá mostras de um rasgo capaz de fazer alguém acreditar que encontre uma solução. Um, um líder desacreditado e ética e moralmente desautorizado. Outro, um líder respeitado mas sem espírito de liderança. Ambos a deixarem o país órfão de liderança. Ora, sem liderança não há confiança e, sem confiança, nem o mundo nem o país pula e avança!
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