Dos conselhos aos milionários
A esquerda é historicamente acusada de reivindicar uma certa superioridade ética e ideológica. E de arrogância, quer na forma como o faz, quer na forma com que se apropria de alguns temas tidos por fracturantes.
Dou por mim muitas vezes a pensar se não terá sido exactamente aqui, nesta acusação - ou na forma como a agarrou -, que a direita começou a ganhar a batalha do combate ideológico. A verdade é que, independentemente de onde e quando começou a ganhar esta batalha, a direita domina hoje o debate ideológico. Para isso muito contribuiram os últimos anos de governação, certamente a mais ideológica da nossa democracia, as novas tecnologias de informação e as novas formas de comunicação - as redes sociais são o que são, mas são ainda o que fizeram a comunicação profissional ser. Os jornais adoptaram os padrões tweeter ou facebook, o toca e foge, o inviesamento, as gordas manipuladas a preceito, sempre ao lado da leitura mais fácil.
Por exemplo: no sábado, no conforto dos militantes do seu partido - que, tendo em consideração o desgaste das últimas semanas, deve ter sido uma coisa parecida com o chegar a casa no fim de um dia complicado e esticar as pernas no sofá, em frente à lareira - António Costa, em evidente descompressão, produziu alguns comentários em torno das consequências fiscais de algumas das medidas do orçamento. Logo foram ridicularizados nos "conselhos de Costa", e potenciados através de página própria no facebook, e logo daí inundaram os jornais, criando uma dinâmica onde já fica difícil saber onde está o ovo e onde está a galinha.
Ontem, em entrevista ao Diário de Notícias, o ministro das finanças, Mário Centeno, perguntado como classificaria alguém que tem um rendimento bruto de 2000 euros por mês, disse: "Lá está, uma pessoa que tem um rendimento bruto de 2000 euros por mês está numa posição da distribuição de quem paga impostos em Portugal, altamente privilegiada. Se isto faz dessa pessoa uma pessoa rica ou não… garanto-lhe que não faz". Para título, para as gordas, o DN foi logo buscar: "Quem tem 2000 euros de rendimento tem uma posição privilegiada". Em menos de um fósforo, nos jornais, televisões e redes sociais o ministro das finanças era acusado de chamar milionário a quem tem um rendimento bruto de dois mil euros mensal...