Narrativas*
Não é muito frequente, mas numa ou noutra ocasião já todos demos com um belíssimo automóvel, daqueles que custam verdadeiras fortunas e nos deixam de queixo caído e vista turva, desfeitos contra um muro que um certo dia decidiu estorvar-lhe o caminho.
Acontece o mesmo, mas com muito mais frequência, com certas narrativas. É cada vez mais frequente encontrarmos excelentes narrativas espaparradas contra o duro muro da realidade. Para assistir em directo a mais um desses choques brutais entre a realidade, dura e inamovível, e o brilho incandescente de narrativas de última geração, basta-nos espreitar por trás dos números da pandemia que não desarmam na área metropolitana de Lisboa. E ver o que se passa com a habitação e com as miseráveis condições de vida de largos milhares de pessoas, maioritariamente imigrantes oriundos das ex-colónias, nos concelhos do Seixal, Almada, Loures ou Amadora.
Convencidos que os bairros de lata faziam parte da História, e que essa chaga social era há muito definitivamente um problema resolvido, olhamos incrédulos para o Jamaica, para Santa Marta de Corroios, para o Segundo Torrão ou para a Urbanização Vale do Chicharro, a mais recente revelação. E vemos lá despedaçada num montão de lata, já não a sedutora e glamorosa Lisboa cheia de turistas, que essa já lá vai e nunca nos deixou ver nada, mas a não menos insinuante Lisboa da fase final da Liga dos Campeões que aí vem. Ou talvez não, sabe-se lá!
Sem a pandemia não chegaríamos lá. Continuariam a contar-nos que os bairros de lata há muitos tinham desaparecido, que somos um país de sucesso na primeira linha do desenvolvimento, que a todos garante as mesmas oportunidades. Que somos os melhores do mundo, que até passamos como referência mundial ao choque com a pandemia. E que não há segunda vaga nenhuma, o que estamos a fazer é mais testes. Como país de primeira que somos…
* A minha crónica de hoje na Cister FM