O Orçamento ficará hoje aprovado, como seria de esperar. Com o anúncio da previsível abstenção do PCP, depois da feira da discussão na especialidade, a aprovação do Orçamento não está em causa.
Não significa no entanto que um cenário de crise política esteja ultrapassado. A forma como este Orçamento foi construído não é politicamente sustentável. Mas, para além disso, e a complicar ainda mais as coisas, surgiu um problema de última hora que não entrava nas contas do governo.
Já noite dentro, com o PSD surpreendentemente a votar a favor, o Parlamento aprovou a proposta do Bloco de Esquerda que trava a entrega de mais dinheiro ao Novo Banco.
Acabar com as entregas de dinheiro ao Novo Banco, sem antes se saber exactamente o que por lá tem andado a acontecer em matéria de alienação de activos era, como se sabe, um velho e conhecido anseio do Bloco. Que, ora dando uma no cravo, outra na ferradura, ou seja, com algum sofisma, era mais ou menos acompanhado por toda a gente. Daí que o governo tenha dado uma voltinha ao assunto e transferido formalmente as entregas para o Fundo de Resolução. Que, como se sabe, não tem dinheiro e precisa que o Estado lho "empreste".
O Bloco percebeu a finta, e percebeu que nem assim as entregas ao Novo Banco deixam de entrar nas contas do défice. E por isso avançou com a proposta de o impedir expressamente, e sem espaço para sofismas.
O que o governo não contava é que, nesta matéria, o PSD lhe virasse as costas. Só que para o PSD este é este já tempo de guerra. E em tempo de guerra não se limpam armas!
Em Maio há mais. É que, com este impedimento, quando chegarmos a Maio e o dinheiro tiver que seguir para o Novo Banco, terá de haver um orçamento rectificativo. E aí, quatro meses depois das presidenciais, e com o novo (velho) presidente empossado há um mês ou dois, a música é outra!
Assiste-se no Parlamento a duas corridas com vista à aprovação do Orçamento do Estado para o próximo ano: uma corre contra o tempo, outra contra a descredibilização do próprio orçamento. E da política em geral, mesmo que essa seja há muito uma corrida perdida.
Discute-se horas sem fim o IVA do frutos vermelhos congelados, e depois o tempo foge. Imagine-se o que foge a discutir centenas, ou milhares, de propostas idênticas, nas mais de quatro mil propostas de alteração ao orçamento, que é o que por lá se vai fazendo.
Não se consome apenas tempo nesse irracional processo. Consome-se a credibilidadade do Orçamento, e consome-se a respeitabilidade da polítca.
Um orçamento é um todo, onde para além dos números, terá de haver uma lógica interna. É difícil acreditar que a lógica e a coerência de uma coisa como um orçamento seja a mesma depois de quatro mil alterações. Nem faz sentido um Orçamento aprovado com quatro mil alterações introduzidas na discussão na especialidade; nem faz sentido discutir e aprovar à última hora, só para garantir a sua aprovação final, tanta alteração.
É o que há, dir-me-ão. É verdade que sim. Quando os governos não estão sustentados em maiorias claras, sejam de um só partido - e sabe-se que disso já não há -, ou resultantes de alianças de coligação, ou ainda de acordos de base parlamentar, vai acabar nisto. Num navegar à vista num mercado ao ar livre, onde tudo se regateia com toda a gente.
Foi isto que o PS e António Costa escolheram. É hoje claro que foi uma escolha errada. Errou nos cálculos, e logo a seguir às eleições descartou os parceiros de geringonça. E voltou a errar quando, mais a mais no quadro da pandemia, empurrou o PSD para fora de qualquer quadro de entendimento.
Acabou sozinho no meio confusão, e à mercê de quem grita mais alto. Se se chamar a isto irresponsabilidade eu assino por baixo.
Rui Rio já anunciou que o seu partido vai votar contra o Orçamento. E explicou que, se o primeiro-ministro tinha afirmado claramente que o negociaria o Orçamento à esquerda, e que o governo cairia quando precisasse dos votos do PSD para o fazer passar, não poderia ser de outra maneira.
Só que, a ser assim, não precisava de todo este tempo para anunciar esta posição. A ser assim, a resposta teria que ter sido imediata. Como não foi, não é assim.
Em resposta, o PS, através do seu secretário-geral adjunto, José Luís Carneiro, acusou o líder do PSD de “ter deixado cair o valor do interesse nacional”. Mas também disse não ter ficado surpreendido, porque isso só prova que o Orçamento é de esquerda.
Com tudo o que era público só tinha que contar com o voto contra do PSD. Como não foi assim, o que era público não era assim.
Posso até ser eu a não estar bem da cabeça mas, ou é impressão minha, ou já anda tudo a bater mal.
Com os resultados eleitorais de 2015, a esquerda encontrou a oportunidade para dizer ao regime que também contava. E o regime respondeu-lhe que sim. Que contava. Tanto que lhe iria entregar a nobre missão de aprovar orçamentos.
Emergiu a novidade que viria a ficar conhecida por geringonça, e seguiram-se quatro anos de harmonia, com a esquerda a levar a preceito a missão que lhe fora confiada. Vieram novas eleições e os resultados eleitorais confirmavam a nova fórmula que o regime tinha encontrado.
Mas já não era bem a mesma coisa. A esquerda tinha dúvidas se tinha ganho alguma coisa com a missão, e o governo do PS e de António Costa, inchado com mais umas dúzias de votos, achou que tinha posto aquela tropa em sentido. Impávida e serena à espera de ordens.
A missão reservada à esquerda era a mesma - aprovar os orçamentos - mas agora menos por missão e mais por obrigação. O regime entendeu que era assim. Que António Costa e Rui Rio se entenderiam em tudo o que de fundamental houvesse para decidir, e repartiriam pelos seus dois partidos todas as instituições do Estado, nem que para isso tivessem que inventar os mais fantasiados simulacros, como aconteceu na distribuição das CCDR, para recorrer a exemplo recentíssimo. A esquerda ficava com a obrigação de aprovar os orçamentos, porque o bloco central não é bom para o regime.
É neste ponto que estamos, no momento em que o regime exige à esquerda que cumpra a missão que à socapa lhe atribuiu.
O regime vive de alternância, mas só tem uma. E por isso tem que a preservar, custe lá o que custar. A bem da Nação. A bem do regime!
E depois admiram-se com os populismos e os extremismos...
Durante anos a fio ouvimos críticas severas às tabelas de retenção de IRS para os trabalhadores dependentes, que constituem a maior fatia da colecta desse imposto. A mais assertiva era que se tratava de uma forma abusiva do Estado se financiar nos cidadãos sem pagar nada. De borla.
Ora, uma das medidas do orçamento ontem simbolicamente entregue na Assembleia da República, apresentado esta manhã pelo ministro das finanças, e em discussão durante o próximo mês e meio, vai justamente corrigir esse problema, e aproximar os descontos de cada um à sua realidade contributiva.
Percebe-se a intenção desta medida. Em tempos difíceis, encontrar uma forma de melhorar a liquidez dos cidadãos. Que não custa dinheiro, e não tem qualquer efeito no défice. Apenas retira ao Estado um financiamento gratuito. Ilógico e até ilegítimo.
Se o orçamento tem boas notícias - e se calhar tem algumas - esta é uma delas. Mas não. Os que antes achavam aquele modelo de retenção um abuso do Estado sobre os cidadãos, acham agora que corrigir esse abuso é um simples truque para os enganar. E não dizem que o governo vai dar no próximo ano o que não irá dar no seguinte, dizem que vai dar o que vai retirar no ano seguinte.
Porque em 2021 há eleições (autárquicas) e no ano seguinte ninguém é chamado a votar. Mesmo que o mais provável seja que até haja.
Se este é o pontapé de saída para este jogo de mês e meio que aí vem, estamos já esclarecidos...
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