A OMS declarou ontem o fim da pandemia covid 19, 1.136 dias depois de declarado o seu início, em 11 de Março de 2020. Atingiu perto de 680 milhões de pessoas, por todo o mundo, matando 7 milhões delas. E esteve na origem de uma das maiores crises económicas e sociais do século.
Para quem não estava a perceber o que se vem passando na economia há já cerca de um ano, com a ruptura generalizada das cadeias de abastecimento e a inflação a disparar - também por efeito da guerra na Ucrânia, mas essa começou há quatro meses, já faltavam produtos e matérias primas por todo o mundo, e já a inflação estava a "bombar" - o caos instalado nos aeroportos de toda a Europa e da América, não é só em Lisboa, vem ajudar a explicar.
É o "desenho" da odiável expressão: "percebeste? ou queres que faça o desenho?"!
A pandemia obrigou à paragem das actividades do negócio da aviação, e os respectivos operadores a adequar as suas estruturas a essa realidade. Com o "fim da pandemia" (entre "aspas", pois), rapidamente a procura saltou para 80 a 90% daquela que era a actividade nas viagens aéreas antes da pandemia. E a oferta, que tinha tido de encerrar estruturas e despedir muito pessoal, não estava em condições de reagir à mesma velocidade. Demolir é sempre mais fácil que reconstruir. Parar é sempre mais rápido que voltar a arrancar.
Evidentemente que isto não aconteceu apenas no negócio aéreo. Foi transversal a toda a economia, até com recuperações de procura mais acentuadas. Estruturas desapareceram, trabalhadores que ficaram desempregados deslocaram-se para outras áreas, geográficas ou profissionais. E quando é preciso que a máquina da economia arranque para funcionar em pleno ... faltam peças. O que não falta é procura!
Os relatos de pessoas infectadas com Covid que tinham recusado a vacina sucedem-se. Uns em discurso público, outros, muitos mais, em confidência ou em grito de desespero. Já todos, certamente, assistimos a uns e a outros. Médicos contam-nos de jovens internados que recusaram a vacina a implorarem-lha, como se naquela altura isso lhes resolvesse outras coisa que não o sentimento de culpa.
São relatos que calam os movimentos negacionistas, que em Portugal nunca tiveram grande expressão, onde as manifestações públicas da intolerância se resumiram àquele triste episódio protagonizado pelo inenarrável Fernando Nobre.
Mas não acontece assim noutras partes do mundo. E não acontece assim na Europa desenvolvida. Não acontece na Alemanha, onde um homem que há poucas semanas matou a mulher e as três filhas - por ter falsificado testes à Covid e temer as respectivas consequências criminais - passou a ser festejado como mártir pelos movimentos negacionistas organizados. Ou na Áustria, onde um mentor de um desses movimentos, Johann Biacsics, dando entrada, infectado, num hospital de Viena, recusou tratamento. Se era Covid - respondeu - não era grave, sabia como tratar. Morreu, poucos dias depois. Para o movimento que liderava, incluindo o próprio filho, não morreu de Covid, mas envenenado no hospital.
Neste segundo Natal que em dois anos de pandemia não temos...
Não faço ideia se faz ou não sentido vacinar as crianças. Pelo que é dado a conhecer, não são, nem de perto, o principal grupo de risco; mas são tão transmissores, ou mais, que qualquer outro. Se acrescentarmos o efeito da interrupção das aulas, e o verdadeiro drama social que isso possa representar para toda uma geração, teremos os pratos da balança verdadeiramente inclinados para a sua vacinação.
Mas isto é o ponto de vista simples de um leigo.
Claro, mesmo para um leigo, é que não faz qualquer sentido que a DGS não divulgue os pareceres que sustentam a decisão de propôr a vacinação. Tanto mais que não a torna obrigatória!
Promover a vacinação das crianças, que não é obrigá-las a vacinarem-se mas, antes, convocar os pais para a sua vacinação, e simultaneamente comunicar que não divulga os estudos que a aconselham, não é apenas um tiro no pé. É um tiro certeiro no coração da credibilidade das autoridades de Saúde!
Quando começávamos a regressar à chamada vida normal, depois mais de ano e meio de restrições e privações, voltamos à casa de partida. Sabemos que este regresso ao Inverno não trará o mesmo drama da morte do último, mas este regresso a mais uma vaga da pandemia e, com ele, o regresso às restrições que julgávamos ultrapassadas, não deixa de nos cair em cima como um gigantesco balde de água gelada.
Tinham-nos dito, e nós tínhamos acreditado, que a vacina despacharia o vírus. Tinhamo-nos iludido com a imunidade de grupo, e pensado que, vacinando-nos, estávamos a salvo. Orgulhávamo-nos de ter uma das mais altas taxas de vacinação do planeta, e de sermos uma comunidade com um negacionismo residual, e por isso insignificante para a tal imunidade de grupo. Com o passar das semanas fomos vendo como noutros países da Europa, como o Reino Unido, a Áustria ou a Alemanha, entre outros, a recusa da vacina estava a contribuir para a inversão da trajectória decrescente da pandemia. Mas continuávamos convencidos que, tendo feito a nossa parte, estávamos salvos.
Não estávamos, como ninguém está enquanto os outros não estiveram. Ninguém está, com noventa por cento da população vacinada com a terceira dose, enquanto noutras partes do mundo a cobertura pela primeira dose da vacina andar pelos 5 ou 6%, como acontece na generalidade dos países africanos. Enquanto esta desigualdade se mantiver rapidamente esgotaremos as letras do alfabeto grego em novas e sucessivas variantes do virus.
E esta desigualdade manter-se-á enquanto for entendido que o problema se resolve a fechar fronteiras, e a enviar para os países mais pobres as doses que sobram aos mais ricos. Enquanto em cada dia que passa houver mais seis terceiras doses aplicadas nos países ricos que primeiras nos pobres. Enquanto se não aumentarem os recursos para a produção de vacinas e se suspenderem os direitos de patente. E, já agora, enquanto ninguém explicar como é que a Covax, o programa da OMS para fazer chegar as vacinas aos países mais pobres, tendo o objectivo de distribuir 2 mil milhões de doses até ao fim do ano, o reduziu em Setembro para 1.425 milhões e, a um mês do fim do ano, apenas entregou 537 milhões de vacinas. Um quarto do objectivo inicial!
A ansiedade está de regresso, de mão dada com o aumento dos números diários de novas infecções e de óbitos com Covid, e com a notícia que a quinta vaga está aí, a ensombrar mais um Natal,
Sabemos que os números são o que são, mas não são os que eram. E sabemos que a ansiedade nunca é boa companheira. Sabendo estas duas coisas seria bom que soubéssemos três outras, bem simples: quem, como e onde. Quem é atingido pelas novas infecções, em que circunstâncias, e onde acontecem. E quem está a morrer - segmento etário, e se há ou não outras co-morbilidades.
Despejar números sem os fazer acompanhar dessa informação complementar não me parece, nesta altura, grande coisa. Como não é grande coisa falar-se do regresso a medidas que bem conhecemos - mesmo que algumas delas nunca tenham exactamente deixado de ser generalizadamente usadas, como o uso de máscara na rua, por exemplo, e que por isso nem representem sequer um regresso - peditório a que o Presidente Marcelo é, como habitualmente, dos primeiros a chegar.
E com tal assertividade que passa logo para o "estado de emergência". Acha que não precisará de o utilizar, mas lá vai dizendo que o pode fazer, e que nem a dissolução da Assembleia da República o impedirá, o que nem sequer será exactamente da mais óbvia constitucionalidade.
O país, que deveria nesta altura estar orgulhoso dos seus 86% de vacinados, um exemplo na Europa e no mundo, precisa é de perceber por onde está agora a passar a pandemia. Não precisa de alarmismo nem de ansiedade. Precisa que a entrada de bares, discotecas, espaços de eventos e espectáculos seja efectivamente vedada a quem não esteja vacinado, ou a testar negativo. Precisa que nas chegadas aos aeroportos haja controlo efectivo da situação da cada passageiro. E, francamente, falar de uso obrigatório de máscara na rua, quando a maioria das pessoas a continua a usar por sua própria iniciativa, e nada dizer sobre o uso obrigatório - e em condições de eficácia, não como adereço de pescoço - nos estádios de futebol, como se viu ainda no jogo da selecção no Estádio da Luz, só serve para aumentar o ruído.
Primeiro de Outubro, o dia da libertação - dizem. Talvez por isso a sua chegada tivesse sido comemorada pela noite fora, logo a partir da meia noite. Ou não tivessem reaberto os bares e discotecas, com longas filas à entrada, ano e meio depois. Os que conseguiram reabrir, dos quais não se sabe quantos irão conseguir manter-se abertos por mais tempo.
Mas esta noite não se pensou nisso. Nem na próxima, nem na próxima... Até porque o fim de semana, com uma ponte que o prolongará até meio da próxima, parece desenhado à medida da folia, dos copos e da batida. Forte.
Como uma moeda, este 1 de Outubro tem duas faces. Se numa está a festa do regresso da noite, na outra está o desespero do regresso das contas a pagar. Abrem bares e discotecas, mas encerram as moratórias, o mesmo tempo depois. E aí a batida é outra. E não é menos forte!
A aguardada sessão de ontem no INFARMED transformou-se numa espécie de "dia da libertação". Por muito que "apenas" se tenha "fechado uma página", como disse o Presidente Marcelo, e que não tenham faltado avisos sobre os riscos que ainda permanecem, ontem foi mesmo o dia em que "ganhamos a guerra", na expressão de Gouveia e Melo, o herói maior entre os muitos heróis que a pandemia deu ao país.
Ontem foi pois um dia histórico. A História faz-se destes dias, e das palavras que destes dias ficam. Das de ontem, de Marcelo, estas não poderão deixar de ficar para a História:
"O povo português votou, e uma forma de voto foi vacinar-se, e aqui votou com uma maioria que até agora nenhuma eleição deu a ninguém. E é bom que isso seja retido".
Associar a resposta nacional à vacinação - que orgulho no Portugal campeão mundial da vacina contra o covid, com 85% da população vacinada! - à de uma expressão eleitoral, a dimensão cívica à democrática, é a mais inteligente resposta aos movimentos negacionistas, obscurantistas, e reaccionários que nos últimos tempos têm engrossando a conspiração contra os valores da democracia.
É mostrar como são inexpressivos na sociedade portuguesa. E, mais ainda que isso, é mostrar que esses movimentos não representam nada mais que a oportunista exploração dos desencantos que atingem boa parte da sociedade portuguesa na sua expressão eleitoral democrática.
Mas esse é outro problema. Que, mais do que nunca, terá de ser decididamente enfrentado!
Portugal é hoje um dos mais bem sucedidos países - porventura o de maior caso de sucesso no mundo - no processo da vacinação contra o covid-19. Por duas razões fundamentais: porque a campanha de vacinação foi bem planeada e melhor executada; e porque os portugueses aderiram em bloco!
Planeamento e rigor de execução não são atributos que geralmente nos sejam creditados, mas cá estiveram, neste processo. Também não somos especialmente conhecidos pelo empenho em causas, mas a verdade é que a História regista momentos vários de galvanização e mobilização nacional à volta de muitas e grandes causas.
Na resposta à pandemia, na medida como acatamos as restrições a que nos tivemos de sujeitar, ou até na forma como tantas vezes antecipamos espontaneamente medidas desse género, fomos, em geral, de um notável comportamento cívico. E na adesão à vacinação, em todos os escalões etários, demos uma lição ao mundo.
Claro que há sempre alguma gente desprovida dos mínimos exigíveis de sanidade mental capazes de alinhar em teorias malucas, de negar as evidências, por mais que há muito estejam demonstradas, capazes de fugir aos mais estabelecidos padrões cívicos, e disponíveis para seguir agendas dos mais deploráveis propósitos de gente de poucos escrúpulos. E que, em sociedades abertas e democráticas, como felizmente é a nossa, têm direito a manifestar-se.
São, felizmente, em Portugal meia dúzia de pessoas. Quando violam o Direito Democrático só têm que ficar sujeitas à lei, naturalmente. É a essa lei que têm de se submeter gente como esse senhor que por aí anda e se diz juiz, os que fizeram aquela espera, em Odivelas, ao almirante Gouveia e Melo, ou, e são evidentemente os mesmos, os que se juntaram à porta do restaurante onde almoçava Ferro Rodrigues, para o insultar e ameaçar.
É preciso que a Procuradoria Geral da República e o Ministério Público, nessa como em todas as matérias, cumpram o seu dever e activem o Código Penal. Mas é preciso mais: é preciso que a sociedade desincentive esses comportamentos, porque esses grupelhos inorgânicos ao serviço de gente perversa, de objectivos bem definidos, sabe usar os instrumentos de comunicação para os potenciar. E aí surgem outras responsabilidades, que não aquelas que a lei pode, e deve, sancionar.
Já bastam as redes sociais, desreguladas e incontroláveis, para lhes dar projecção de que se alimentam. Mas ainda têm as televisões para os fazer engordar.
Aquilo que vimos com Gouveia e Melo, com o dito juiz perante os agentes da PSP, e com Ferro Rodrigues é notícia?
É, mas poderia certamente ser dada de outra forma. E mais um pormenor: na "espera" a Gouveia e Melo, na sua visita a um centro de vacinação em Odivelas, poderia esperar-se cobertura televisiva; no deplorável confronto do tal juiz com os agentes da PSP, cujo acontecimento era a sua audição no Conselho Superior de Magistratura, já essa cobertura é mais difícil de perceber; e na "visita" ao almoço de Ferro Rodrigues com a mulher, no fim de semana, é de todo incompreensível. Simplesmente não havia acontecimento para cobrir!
E é aqui que surge o mais rocambolesco e chocante: o jornalismo justifica o "acontecimento" na presença do médico Fernando Nobre, o ex-candidato à Presidência da República e histórico da AMI, para discursar nessa manifestação.
Esse mesmo. Quem por aqui acompanha as memórias de "10 anos" tem podido revisitar a personagem, presença frequente nessa altura destas páginas. Sem qualquer tipo de surpresa, este episódio mostra ao que pode chegar uma criatura que um dia se apresentou como exemplo e personificação da cidadania.
Há portugueses que não merecem os portugueses que têm como concidadãos!
Foi hoje decretado no Reino Unido o freedom day. É estranho que alguém declare um dia de liberdade, da libertação do vírus, num dia em que se batem recordes de novas infecções provocadas pelo mesmo vírus. É como estar a anunciar a vitória numa guerra debaixo de bombardeamentos inimigos.
Vimos há uns anos um ministro dos negócios estrangeiros de Saddam Hussain fazer isso, e nem a personificação desse acto no cúmulo do ridículo e da cegueira política lhe garantiu um lugar na História.
Hoje Boris Jonhson prestou-se a esse papel. E para o desempenhar com maior fidelidade ao original fê-lo em isolamento profilático, Tal como o seu ministro das Finanças, Rishi Sunak, e ambos por terem estado em contacto com o colega da Saúde, Sajid Javid.
Não sei se poderia ser mais ridículo. Não seria fácil de escolher entre a réplica ao épico discurso de Churchill no fim da II Guerra Mundial que o actual primeiro-ministro britânico tinha preparado para hoje, e o vídeo que acabou por divulgar, gravado em isolamento, a declarar o freedom day num registo de "gozem a liberdade, invadam pubs e discotecas" ... mas "por favor, por favor, por favor, tenham cuidado." E, "por favor, por favor, por favor, quando forem chamados para a segunda dose da vacina, marquem presença".
Por cá, entre nós, não acontecem destas coisas. Até porque cá "não há ditadura sanitária". Há apenas muita ignorância, e essa não precisa de liberdade para nada.
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