Chegados à terceira fase de desconfinamento as coisas parecem complicar-se. Os números dos novos casos de infecção na grande Lisboa activam sinais de alarme e sugerem passos atrás. Os números, mas também as circunstâncias da propagação do vírus.
A taxa de transmissão da doença nas zonas suburbanas da grande Lisboa está fora de qualquer padrão nacional e o vírus está, final e claramente, a revelar a dinâmica de desigualdade social, de miséria e de pobreza que se sabia que arrastaria consigo. Situações de pobreza, de habitação degradada e de precariedade social aceleraram a taxa mas também o paradigma da transmissão da doença: aos idosos, em lares, do Norte há algumas semanas, sucedem-se agora, na grande Lisboa, adultos jovens em contexto laboral, como no concelho da Azambuja, ou de bairros degradados, como nos de Loures ou do Seixal.
Não são apenas realidades sócio-sanitárias muito diferentes, são realidades com riscos muito distintos. E esta é bem mais perigosa!
As regras que o governo se prepara para anunciar para esta terceira fase de desconfinamento terão naturalmente isso em consideração. Poderão não dar alguns passos atrás, mas anularão certamente outros passos em frente. Sobre o aprofundamento das desigualdades sociais que se desenham a traço grosso é que não poderão fazer muito. Talvez os 26 mil milhões de euros que se espera que aí venham possam fazer alguma coisa...
Em cima da passadeira da caixa do supermercado duas garrafas de óleo alimentar, um garrafão de água e dois sacos de pão. No chão ficara o cesto, com mais dois sacos de pão.
Ao ver que a operadora registara já tudo o que estava à boca da caixa, o cliente que a seguia na fila chamou-lhe a atenção: olhe que ainda está isto no cesto. Segurando na mão um cartão multibanco e uma fita de papel donde não desviava o olhar, a mulher respondeu com um simples "deixe estar, é para ficar".
Três euros e noventa e seis - ouviu-se da operadora da caixa. A mulher voltou a olhar para a fita de papel: "então tire este saco de pão". Contrariada a funcionária retirou o saco, teclou, e de novo, nom mesmo tom de voz: "três euros e cinquenta e cinco".
A fila, que não parava de crescer, começava a dar sinais de impaciência. Já sem necessidade de voltar a olhar para a tira de papel de poucas linhas, ouve-se: "só pode ser três euros e trinta e três". E de seguida pede à operadora para retirar uma carcaça, ou duas, se fosse preciso, do último dos quatro sacos de pão que havia recolhido para o seu cesto de compras.
A operadora fechou por fim a conta, e a mulher passou o cartão na máquina, introduziu-lhe o código e recolheu as suas compras, enquanto a funcionária explodia: já viu o pão que se estragou por sua causa?
Terceiro da fila, senti uma raiva irreprimível a subir-me pelo corpo acima. Uma raiva que se tornou insuportável quando me dei conta que acabara de assistir a tudo aquilo sem sair da fila, e sem me chegar à frente e pedir à funcionária que repusesse todo o pão retirado.
É Natal, dizem... Sim, já senti raiva neste Natal!
A erradicação da pobreza é o mais saudável objectivo de qualquer projecto de governação. Há dois instrumentos políticos para o perseguir: a política de rendimentos e as políticas sociais. E duas receitas, ou três, considerando a combinação das duas: redistribuir melhor o rendimento, aumentando o dos extractos mais baixos à custa do dos mais altos, e subsidiar, através de apoios sociais, os que, pelas razões mais diversas, não tendo outras fontes de rendimento, não tenham acesso ao trabalho.
Há sempre forma de mitigar esse objectivo. Substituem-se os instrumentos políticos por instrumentos de linguagem e chega-se lá perto. Pega-se na definição de pobreza e dá-se-lhe as voltas que forem precisas até acabar com ela.
Assinalou-se ontem o dia Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, data foi comemorada oficialmente pela primeira vez em 1992, com o objectivo de alertar a população para a necessidade de combater a fome e a pobreza, cuja erradicação constitui um dos oito objectivos do milénio definidos pela ONU no arranque do século.
Não é o sucesso ou insucesso destas datas comemorativas que me suscitam o tema. Estas datas são o que são e, se não resolvem os problemas que evocam, também certamente não lhe dificultam o combate. Servem acima de tudo para isto, para que se fale das coisas, para que, pelo menos num dia, falemos de problemas com que nos deveríamos preocupar todos os dias.
O problema da pobreza é, há-de ser sempre a mancha mais negra, e a nódoa mais resistente, do desenvolvimento da humanidade. E a desigualdade que lhe está associada a maior nota da incapacidade humana para harmonizar justiça e solidariedade com desenvolvimento.
A nível global, quando o universo estatístico é toda a humanidade, a pobreza está a diminuir a uma taxa sem precedentes. Em 1990, 43% da população mundial, pouco menos de metade, vivia em pobreza extrema, com menos de 1,25 dólares por dia. Actualmente esse número é de 21%, menos de metade.
Sabe-se que este é um resultado da globalização. É inequívoco que a deslocalização industrial, atrás de mão-de-obra muito mais barata, proletarizou centenas de milhões de pessoas nas regiões menos desenvolvidas do mundo, tirando-os da fome, mesmo pagando-lhes mal. Não é menos inequívoco, porém, que essa mesma deslocalização deixou, nos países que abandonou, nas regiões mais desenvolvidas, um rasto de desemprego e um lastro de miséria por onde a pobreza galgou, crescendo a um ritmo pouco diferente do da descida no polo inverso.
E esse é o maior drama do ocidente nos tempos que correm, com preocupantes reflexos políticos e sociais em sociedades incapazes de responder aos complexos desafios dessa nova realidade e onde, acima de tudo, as pessoas estão indisponíveis para aceitar viver um pouco menos bem para que outros, do outro lado, possam viver um pouco melhor.
Chega-nos da Suécia mais uma ilustração do copo meio cheio ou meio vazio. Numa pequena cidade, Eskilstuna, a pouco mais de 100 quilómetros de Estocolmo, na metade sul do país, que dá nome a algumas peças de mobiliário do Ikea, foi introduzida uma lei que obriga quem andar a pedir dinheiro nas ruas a requerer uma licença e pagar uma taxa trimestral de 250 coroas (cerca de 23 euros) para exercer a actividade.
Enquanto a maioria das cidades suecas proibia a mendicidade, em Eskilstuna entendeu-se enquadrá-la, obrigando desde logo ao registo dos seus agentes. Quem não tiver esta licença e for apanhado a pedir dinheiro na rua sujeita-se a uma multa - quase 372 euros - que lhe leva o pecúlio de muitos dias de actividade.
A medida, como o copo meio, divide as opiniões. Há quem ache uma medida dissuasora da mendicidade, que aproxima os marginalizados do Estado e das respostas que tem para o problema, que na Suécia, como se sabe, não são poucas. Mas há também quem ache que, pelo contrário, ao licenciar a actividade, o Estado está a reconhecer e a institucionalizar a pobreza mais exposta e socialmente mais marginalizada.
É no mínimo interessante, esta capa de hoje do DN - que não está nas bancas - na rara e feliz oportunidade de cruzar o "Estado da Nação" com o "retrato do país".
O último debate da actual legislatura na Assembleia da República mostrou uma "Nação" em "estado" de eleições, com muito pouco a ver com o país retratado nos dados estatísticos que a Pordata hoje revela. Na última década - um pouco mais, entre 2007 e 2018 - a população diminuiu e ficou mais velha. Os portugueses casam menos e têm menos filhos. Estão mais letrados e mais formados, mas igualmente pobres.
Tudo mudou nesta última dúzia de anos, só a pobreza ficou. Inalterada e inamovível, como "o Estado da Nação"!
O primeiro programa “Quadratura do Círculo” da SIC, de 2015, contou com a presença habitual de Jorge Coelho, Pacheco Pereira e do convidado Eugénio Fonseca, presidente Cáritas Portuguesa, que trouxe ao programa a experiência e a visão sobre a problemática do combate à pobreza, à exclusão social, a que, presentemente, se associa a doença silenciosa do “medo”.
Sobre os desequilíbrios sociais acentuados pela austeridade, Eugénio Fonseca deu o seu testemunho da adversidade dos nossos parceiros europeus representados na Tróica, particularmente do representante do BCE, quando este afirmou da inevitabilidade dos maiores sacrifícios recaírem sobre a instável classe média a desaparecer, porque, disse: “os ricos não querem dar e os pobres não têm para dar”.
No final do programa, Jorge Coelho terminava a sua intervenção de forma magistral: “…desafio a sociedade civil para criar condições para lutar para que em Portugal haja uma sociedade decente e uma vida com a dignidade que o ser humano merece ter”. Ou seja, conversa fiada!
Não resisti a vir aqui comentar porque não devemos silenciar. Este é o tipo de político que tem para as circunstâncias o discurso versátil, mas que não se envolve. Tem o treino do pântano de Guterres e a escola da promiscuidade entre Estado e negócios privados. Seria mais sério evocar a sua posição estratégica no PS - partido do arco da governabilidade - para se comprometer a diligenciar políticas de combate à exclusão e à pobreza, em vez de evocar essa entidade difusa e imaterial que é a sociedade civil, quando se sabe que a sociedade só tem intervenção real na governação através dos partidos.
A sociedade civil tem de facto de acordar e pressionar a regeneração dos partidos. Mas sempre que aparece qualquer movimento nesse sentido, os partidos existentes sentem-se ameaçados, porque sabem que as estruturas partidárias constituem-se como plataformas de assalto à mesa do orçamento e, nesta mesa, não há lugar para todos.
Para Jorge Coelho, entre o “Ser” e o “Não Ser” segue uma terceira via – a da “aparência” – estratégia tipo Lili Caneças. É melhor manter as aparências louvando o papel da Caritas Portuguesa e propondo um desafio patético de que nada serve. A existência de organizações humanitárias que se dedicam ao combate dos males da sociedade dá mesmo jeito a este tipo de políticos, que no fundo dos seus pensamentos e para os seus botões, dirão antes o poema fracturante de Golgona Anghel:
Na semana passada foi divulgado pelo Fórum Económico Mundial o ranking mundial da competitividade 2014/2015, que colocava Portugal no 36º lugar, à custa de uma subida de 15 posições.
Não sei o que é que isto vale, mas não me parece que valha de grande coisa. Lembra-me até, agora que tanto se fala do tema, que a selecção nacional de futebol há pouco mais de dois meses, à chegada ao Brasil era, pelo ranking da FIFA, a quarta melhor do mundo…
Mas sei que a política deste governo tem tido grande preocupação com a competitividade do país, mas também sei à custa de quê. Sei que o governo, de tão preocupado com a concorrência com os países de leste e até dos asiáticos, achou que o melhor para competitividade seria recriar esses países em Portugal. Com êxito – se calhar o êxito que lhe permitiu subir quinze degraus de uma só vez, o tal pulo gigante de Paulo Portas -, o país está já mais pobre que muitos desses países...
Esta seita é duma pobreza criativa confrangedora. Não conseguem ter imaginação para mais, então põem os jornais todos a anunciar aumentos de impostos no orçamento rectificativo para, depois, a notícia ser que não aumentaram os impostos!
O CDS vem e diz, alto e bom som, que não houve aumento de impostos, com aquela cara de quem, baixinho e de indicador espetado em direcção ao esterno, diz: fomos nós, fomos nós… se não fôssemos nós eles tinham aumentado os impostos. O PSD não lhe fica atrás e, pela voz de um Marco António triunfante, como se acabadinho de chegar de mais uma vitoriosa campanha de conquistas do império, ficamos a saber que há uma muito boa notícia: “não há aumento de impostos”!
Uma vez ainda teria graça, e até se poderia dizer que havia ali alguma imaginação. Agora, assim, tão repetido… E sem se rirem...
Que pobreza!
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