O povo... Sempre o povo, em nome do povo e da sua vontade. Soberano, coitado... Não é só invocar o nome de Deus em vão que deve ser pecado. O invocar o nome do povo em vão também deveria ser pecado. Não diria mortal, daqueles que se resolvem numa confissão com meia dúzia de padres nossos, mas pecado político, cuja absolvição substituisse uns padres nossos e umas avé-Marias por uma penitência de prolongada abstinência de candidaturas eleitorais.
Foi talvez a pensar nisso que os mestres da demagogia política criaram a célebre retórica interrogativa: "Se isto não é o povo, onde é que está o povo"?.
A questão desarma qualquer um, e encontra sempre um povo à mão para tudo o que der jeito. Lembrei-me disto tudo ao ouvir Paulo Portas dizer que só sabe que não foi pela vontade do povo que "Assunção Cristas, ontem, era ministra da Agricultura e hoje é deputada da oposição, eu ontem era vice-primeiro-ministro e hoje sou deputado da oposição".
Vestido a rigor, bem cedo o povo saiu à rua. Primeiro de Maio há só um, e há que aproveitar… antes que esgote. Que acabe, como tudo está a acabar… Nunca se sabe se vai haver mais, quando tudo se está a ir, como se tudo o vento levasse…
Chegar bem cedo, como o povo gosta. Porque, cedo erguer, mesmo no feriado, dá saúde e faz crescer. E depois é esta coisa estranha que temos dentro de nós, esta vontade indómita de chegar primeiro. De sermos os primeiros, os maiores… Quem primeiro alça, primeiro calça!
Vestido o melhor fato de treino domingueiro, foi um ver se te avias… A corrida começou logo à saída da porta e ainda mal o sol raiava já lá estavam todos, ordeiramente arrumados em fila. Sim, porque não é primeiro quem quer, se assim fosse seríamos todos primeiros. E somos ordeiros, mau grado um ou outro exagero, um ou outro excesso em situações limite.
E ali, em fila ordeira, depressa passaram aquelas duas ou três horas. Que seriam sempre de seca, de enorme seca, não fossemos também dados à conversa. Rapidamente fazemos conversa, de tudo fazemos tema, sobre tudo temos opinião: a melhor – claro, não fazemos isso por menos. A facilidade com que temos opinião sobre tudo, mesmo sobre aquilo de que nem fazemos ideia, é a mesma com que a transformamos numa verdade insofismável dos factos.
Fala-se de tudo e de nada. Da novela ao futebol, mas fala-se sobretudo deles. Eles, essa entidade mítica criada no imaginário da condição portuguesa, são as estrelas das conversas que temos. Eles, os culpados de tudo o que nos acontece a todos e a cada um de nós. Eles, os responsáveis pelo estado a que isto chegou. Eles, que só existem para tratar da vida…deles. E para nos tramar!
Entretanto começavam a chegar uns polícias. O povo é sereno. E ordeiro, mas as coisas às vezes descambam … Os ajuntamentos comportam sempre riscos, e aí está a História para ajudar a lembrá-los. E, como o homem, polícia prevenida vale por dois. Por duas!
O grande momento aproxima-se. Os ponteiros do relógio marcam já as nove horas, as portas abrem-se e rapidamente engolem aquela multidão, já desordenada que não, ainda, desordeira. Ouvem-se as primeiras exclamações de surpresa, logo seguidas de outras, mais fortes, de desilusão. Daí à revolta foi menos que o tempo de um foguete no ar: malandros, enganaram o povo!
Então? Mas isto é só descontos de 25%... E durante toda a semana, exactamente como está aqui no folheto…Foi para isto que viemos para aqui às seis da manhã?
Isto não se faz… Andam agozar com o povo...
Pouco a pouco começavam a sair com os seus carrinhos cheios. Uns, de compras, outros de raiva!
Foi assim, no sítio do costume: um pouco por todo o país, neste primeiro de Maio!