De "picareta falante" (mais uma notável expressão que devemos à memória de Vasco Pulido Valente) a incontinente verbal vai um pequeno passo - justamente o que Maecelo deu ao anunciar a visita do primeiro-ministro à Ucrânia que, por razões óbvias, era mantida secreta. E por razões óbvias secreta deveria ser mantida.
Assim não achou Marcelo. Mais uma vez. Como se estar Presidente fosse o mesmo que estar outra coisa qualquer e apenas "uma coincidência feliz".
Há certamente coincidência entre a visita de Marcelo a Timor e a de António Costa à Ucrânia. Que o Presidente tenha encontrado nela uma "coincidência feliz" para falar quando deveria estar calado não é coincidência. E muito menos feliz!
Sabe-se que o segundo mandato presidencial é sempre muito diferente do primeiro. A razão é simples: já não tem que trabalhar para a reeleição.
Marcelo não só não podia fugir à regra, como era mesmo o mais dado a essa metamorfose. A quem o fato assenta melhor. Acresce a maioria absoluta de António Costa e a dizimação da sua área política. Tudo a jeito portanto para o festival Marcelo em versão segundo mandato.
E não perdeu tempo. Tudo lhe tem servido para apertar com António Costa, mas isso percebe-se. E faz até parte do menu de quezílias do segundo mandato. O que já não se percebe, nem é aceitável, é que tenha começado a propor sucessores. A quatro anos de terminar o mandato já indica Paulo Portas, ou Marques Mendes, como sucessores. Isto é que nunca se tinha visto. Nem nunca se deveria ver!
A Marcelo não se perdoa tudo, por muito que ele esteja convencido do contrário.
Temos finalmente governo, o XXIII da Constituição, em funções. Foi ao fim da tarde de ontem empossado, no Palácio da Ajuda.
Depois de longo desfile de personalidades a rabiscar a assinatura de comprometimento solene com a sua honra de cumprirem com lealdade as funções confiadas, o presidente Marcelo iniciou o seu discurso com uma prolongada viagem pela guerra em curso na Ucrânia. Parecia um discurso na ONU, mas não. Era só o caminho cheio de curvas para o ponto de chegada: que António Costa nem pensasse, em nenhuma altura do percurso governativo, sair da estrada e tomar o rumo para Bruxelas, deixando o volante da governação na mão de um dos seus delfins.
Aquele volante é dele, e só dele. Se o entregar a alguém, toda a gente salta fora da carroça. Ficou dito e, dito isso, pouco importa o que mais disse. Até porque não havia mais nada de novo para dizer. Que quer reformas, e que não gosta muito desta maioria absoluta, que gostava mais de outra, não é novidade para ninguém. Que gostou que nada tivesse ficado na mesma, mas só porque isso lhe legitimou a decisão de dissolver o Parlamento, em Outubro passado, também não.
No resto, foi Marcelo a ser Marcelo. Incluindo o desprezo no cumprimento a João Gomes Cravinho, o novo Ministro dos Negócios Estrangeiro, sem sequer o olhar. E António Costa a ser António Costa, a pintar de cor de rosa um país pintado de cor de rosa, pouco incomodado por Marcelo ser Marcelo.
O Tribunal Constitucional recusou-se a validar a pantominice dos partidos, e mandou repetir a votação no círculo da Europa, em que mais de 157 mil votos acabaram considerados nulos pela mistura dos votos legalmente expressos (bem ou mal, mas é a lei que é, e essa obriga à cópia do cartão de cidadão para validar o voto) com os outros, a que faltava o cartão de cidadão.
Não é. Se, pelo contrário, não for a democracia a não funcionar é, pelo menos, a democracia a funcionar mal.
Depois desta enorme falta de respeito pelos que vivem e trabalham lá fora, para onde na maioria dos casos foram empurrados, quantos emigrantes irão agora votar?
No despropósito é tudo igual. A única diferença é que o presidente Marcelo aproveitou a vitória que tinha à frente para falar de uma derrota que (ainda) não aconteceu; enquanto Rui Rio teve que inventar uma vitória para não falar da derrota que tinha à frente!
A ansiedade está de regresso, de mão dada com o aumento dos números diários de novas infecções e de óbitos com Covid, e com a notícia que a quinta vaga está aí, a ensombrar mais um Natal,
Sabemos que os números são o que são, mas não são os que eram. E sabemos que a ansiedade nunca é boa companheira. Sabendo estas duas coisas seria bom que soubéssemos três outras, bem simples: quem, como e onde. Quem é atingido pelas novas infecções, em que circunstâncias, e onde acontecem. E quem está a morrer - segmento etário, e se há ou não outras co-morbilidades.
Despejar números sem os fazer acompanhar dessa informação complementar não me parece, nesta altura, grande coisa. Como não é grande coisa falar-se do regresso a medidas que bem conhecemos - mesmo que algumas delas nunca tenham exactamente deixado de ser generalizadamente usadas, como o uso de máscara na rua, por exemplo, e que por isso nem representem sequer um regresso - peditório a que o Presidente Marcelo é, como habitualmente, dos primeiros a chegar.
E com tal assertividade que passa logo para o "estado de emergência". Acha que não precisará de o utilizar, mas lá vai dizendo que o pode fazer, e que nem a dissolução da Assembleia da República o impedirá, o que nem sequer será exactamente da mais óbvia constitucionalidade.
O país, que deveria nesta altura estar orgulhoso dos seus 86% de vacinados, um exemplo na Europa e no mundo, precisa é de perceber por onde está agora a passar a pandemia. Não precisa de alarmismo nem de ansiedade. Precisa que a entrada de bares, discotecas, espaços de eventos e espectáculos seja efectivamente vedada a quem não esteja vacinado, ou a testar negativo. Precisa que nas chegadas aos aeroportos haja controlo efectivo da situação da cada passageiro. E, francamente, falar de uso obrigatório de máscara na rua, quando a maioria das pessoas a continua a usar por sua própria iniciativa, e nada dizer sobre o uso obrigatório - e em condições de eficácia, não como adereço de pescoço - nos estádios de futebol, como se viu ainda no jogo da selecção no Estádio da Luz, só serve para aumentar o ruído.
Já Cavaco, no tão propalado artigo no Expresso do passado sábado, tinha apontado para lá. Teve em mira mais algumas janelas, mas aquela também lá estava. Cavaco tem pouco jeito para muita coisa, mas na fisga é bom. De fisgas sabe ele, e com fisgas também se partem vidros. Não é só com boladas.
E lá está Rui Rio com os vidros todos partidos, e com a casa feita em cacos e a arder. Já não tem por onde se safar, e já não tem condições para dar luta a um inclemente (também já perdeu, e quem já perdeu, em política ao contrário de grande parte do resto, tende a ser mais inclemente), Paulo Rangel. Quando nem o Conselho Nacional tem na mão - a sua tentativa para adiar as directas, com que tentou evitar que a bola de Marcelo e a fisga de Cavaco lhe atingissem a janela, foi claramente derrotada com 70 votos contra e apenas 40 a favor - já não tem por onde resistir...
Mais cedo, mais coreografado, e com uma nova (velha) personagem em palco - o Presidente Marcelo, evidentemente. E como ele gosta de palco, como gosta de grandes planos, como gosta de ser o primeiro ...
Deslumbrado com a execução do pontapé, ali ficou em auto-contemplação, desligado de tudo. A bola, essa, seguia a toda a velocidade direitinha às janelas da vizinhança. Quando deu por si viu-se o ar de miúdo traquina a vibrar com os vidros a estilhaçados ali à volta...
A aguardada sessão de ontem no INFARMED transformou-se numa espécie de "dia da libertação". Por muito que "apenas" se tenha "fechado uma página", como disse o Presidente Marcelo, e que não tenham faltado avisos sobre os riscos que ainda permanecem, ontem foi mesmo o dia em que "ganhamos a guerra", na expressão de Gouveia e Melo, o herói maior entre os muitos heróis que a pandemia deu ao país.
Ontem foi pois um dia histórico. A História faz-se destes dias, e das palavras que destes dias ficam. Das de ontem, de Marcelo, estas não poderão deixar de ficar para a História:
"O povo português votou, e uma forma de voto foi vacinar-se, e aqui votou com uma maioria que até agora nenhuma eleição deu a ninguém. E é bom que isso seja retido".
Associar a resposta nacional à vacinação - que orgulho no Portugal campeão mundial da vacina contra o covid, com 85% da população vacinada! - à de uma expressão eleitoral, a dimensão cívica à democrática, é a mais inteligente resposta aos movimentos negacionistas, obscurantistas, e reaccionários que nos últimos tempos têm engrossando a conspiração contra os valores da democracia.
É mostrar como são inexpressivos na sociedade portuguesa. E, mais ainda que isso, é mostrar que esses movimentos não representam nada mais que a oportunista exploração dos desencantos que atingem boa parte da sociedade portuguesa na sua expressão eleitoral democrática.
Mas esse é outro problema. Que, mais do que nunca, terá de ser decididamente enfrentado!
- "Ninguém pode garantir que não se volta atrás no desconfinamento".
- "Por definição, o Presidente nunca é desautorizado pelo primeiro-ministro"
Factos:
Face aos valores em crescendo da incidência pandémica na capital e nalguns concelhos limítrofes, e ouvindo a pressão de muitos especialistas para se decretarem de imediato medidas de retrocesso no desconfinamento, o Executivo impõe uma espécie de cerca sanitária a Lisboa aos fins de semana, que começa já hoje, às 15:30, e se prolonga até às 6:00 horas de segunda feira
Conclusão:
Quando se fala à toa o problema não é ser desautorizado pelo primeiro-ministro, é sê-lo pelos factos.
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