O DANA matou no Levante espanhol centenas de pessoas - mais de duas centenas já conhecidas, mas certamente com muitas ainda por encontrar entre os desaparecidos -, deixou mais de quatro mil feridos, e milhares de outras lançadas no caos e no pânico, sem telecomunicações, sem estradas, sem pontes, sem casa, sem nada de tudo o que lhes tinha demorado toda uma vida a construir.
Ao desespero da tragédia os valencianos juntavam o desespero do abandono, na lama. Desespero aproveitado para transformar em raiva.
E a dor e o luto explodiram em raiva nas ruas - que tanta gente de boa vontade se esforçava em limpar - cheias de lama. De lama barrenta, misturada com os destroços da tragédia, e de lama humana misturada com os destroços de Abascal.
Os reis de Espanha, Filipe e Letizia, apanhados na raiva, levaram com lama. Resistiram o que puderam, o suficiente para fazer resistir a dignidade do Estado. Pedro Sánchez, o presidente do governo teve de recuar. E de fugir. Das pedras e da raiva.
Não consta que Carlos Mazón, presidente do Governo Regional, generalizadamente acusado de, antes, nada avisar e, depois, nada fazer - nem sequer para pedir ajuda - tenha sido atingido pela raiva. É capaz de ser mero acaso ...
Em cima da passadeira da caixa do supermercado duas garrafas de óleo alimentar, um garrafão de água e dois sacos de pão. No chão ficara o cesto, com mais dois sacos de pão.
Ao ver que a operadora registara já tudo o que estava à boca da caixa, o cliente que a seguia na fila chamou-lhe a atenção: olhe que ainda está isto no cesto. Segurando na mão um cartão multibanco e uma fita de papel donde não desviava o olhar, a mulher respondeu com um simples "deixe estar, é para ficar".
Três euros e noventa e seis - ouviu-se da operadora da caixa. A mulher voltou a olhar para a fita de papel: "então tire este saco de pão". Contrariada a funcionária retirou o saco, teclou, e de novo, nom mesmo tom de voz: "três euros e cinquenta e cinco".
A fila, que não parava de crescer, começava a dar sinais de impaciência. Já sem necessidade de voltar a olhar para a tira de papel de poucas linhas, ouve-se: "só pode ser três euros e trinta e três". E de seguida pede à operadora para retirar uma carcaça, ou duas, se fosse preciso, do último dos quatro sacos de pão que havia recolhido para o seu cesto de compras.
A operadora fechou por fim a conta, e a mulher passou o cartão na máquina, introduziu-lhe o código e recolheu as suas compras, enquanto a funcionária explodia: já viu o pão que se estragou por sua causa?
Terceiro da fila, senti uma raiva irreprimível a subir-me pelo corpo acima. Uma raiva que se tornou insuportável quando me dei conta que acabara de assistir a tudo aquilo sem sair da fila, e sem me chegar à frente e pedir à funcionária que repusesse todo o pão retirado.
É Natal, dizem... Sim, já senti raiva neste Natal!
Mais uma fotografia a abalar consciências e a levantar o eterno dilema da sua divulgação, sempre na fronteira - e é de fronteiras que trata - entre a informação e o voyeurismo.
Falo da fotografia que por estes dias vai chocando o mundo, dos corpos inertes de um pai e da sua filha, ligados por uma T shirt que dos dois fazia um só, nas margens do Rio Grande, na fronteira do México com os Estados Unidos. O rio dos Westerns americanos, o rio do Rio Bravo de John Wayne, Dean Martin e Rick Nelson. Meia dúzia de latas vazias de cerveja americana e uma garrafa de plástico, igualmente vazia, de um refrigerante igualmente americano acentuam a cor americana do cenário que envolve o corpo da menina abraçada ao pai.
A mesma cor do sonho que levou uma jovem família salvadorenha que vivia com dez dólares por mês a chegar ao México para, como tantos milhares de outras, entre muros e rios intransponíveis, a escolher rotas cada vez mais perigosas para enfrentar a fronteira da morte, outrora do sonho.
O jovem casal fez-se ao rio, com a filha, Valéria, de dois anos, amarrada por uma Tshirt ao corpo do pai, Oscar, de 28, decididos a atravessá-lo para o lado de lá. Mesmo sabendo que naquela terra os sonhos já foram trocados por pesadelos, nada pode ser pior que o inferno de miséria e violência que querem deixar para trás. Quando a corrente do rio resolveu colocar-se às ordens de Trump e engrossar-lhes a adversidade, a mãe nadou de volta para o México. O pai prosseguiu com a filha bem colada ao corpo… até que a corrente e a morte os devolvessem à margem a que não queriam regressar.
Acontece todos os dias. Acontece com milhares de homens, mulheres e crianças que por aquelas paragens fogem diariamente da violência e da pobreza das Honduras, da Guatemala ou de El Salvador… Desta, como de outras vezes, a diferença é uma fotografia. Que pode até não fazer grande diferença. O mais provável é que dentro de dias, talvez semanas, volte como tantas outras ao esquecimento.
Que ao menos nos faça crescer a raiva!
* Da minha crónica de hoje na Cister FM
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