O texto abaixo, que volta ao tema do referendo aprovado há precisamente uma semana no parlamento, provocou muito mais reacções contrárias do que favoráveis, como se pode concluir por uma passagem pela caixa de comentários. Que pelo menos querem dizer, ao contrário do que chegou a parecer, que a questão da adopção e da co-adopção por casais do mesmo sexo está longe de ter sido incorporada na sociedade portuguesa. Mesmo que a maioria das manifestações misturem conceitos e preconceitos, confundam valores com tabus e ignorância com ideologia...
Porque, se outra gente, em idênticas circunstâncias (referendo sobre a IGV), soube guardar um conveniente e respeitador longo período de nojo - 10 anos - esta gente nem uma semana soube guardar de luto!
Se vivêssemos num país normal, com o mínimo de sentido crítico e de mobilização cívica, que não estivesse completamente sedado, na passada sexta-feira teria acontecido na Assembleia da República um dos maiores golpes nesta democracia de faz de conta que nos vai corroendo.
A aprovação de um referendo sobre a adopção e a co-adopção por casais do mesmo sexo, por 93 deputados do PSD, é um golpe baixo, uma canalhice e um insulto à democracia.
Porque pretende levar a referendo aquilo que há pouco mais de seis meses a Assembleia da República decidiu, para cancelar o respectivo processo legislativo. Porque fá-lo atrás de um escudo: a JSD não é mais que um escudo, porque a proposta foi aprovada pela Comissão Política do PSD, e o próprio Passos Coelho teve já que vir dar-lhe cobertura. Porque, numa matéria de consciência, impõe a disciplina de voto, obrigando deputados que haviam votado a favor da lei a votar agora nesta trapaça, e a declarações de voto indignas e vergonhosas. Haverá maior atentado à dignidade, maior achincalhamento, que um deputado dizer, justamente em matéria de consciência, que foi obrigado a votar contra a sua própria consciência? E finalmente, no que ao domínio processual respeita, pela hipocrisia que veio da bancada do outro parceiro de maioria. Que, manifestando-se contra a iniciativa, mais por razões de oportunidade política e financeira do que outras, viria pela abstenção, seguramente que imposta pela direcção do grupo parlamentar, a viabilizá-la.
Se no plano processual e no dos princípios e valores políticos a afronta é grande, não é menor no dos valores da emancipação cívica e civilizacionais.
Porque não se sujeita a referendo o exercício de direitos humanos. Porque, ao contrário do que o primeiro-ministro teve o desplante de afirmar, não é democracia referendar direitos de minorias. É por isso que existe a democracia representativa, e é por isso que as grandes conquistas da civilização que decorrem dos direitos das minorias andam à frente da sociedade.
Se não fosse assim ainda hoje haveria escravatura, porque as sociedades continuariam esclavagistas. As mulheres ainda não votariam. O divórcio seria proibido. A igualdade de género não passaria de uma miragem…
Escrevi aqui em Maio, nesta mesma minha coluna, aquando da aprovação da lei, que não iria então manifestar a minha opinião sobre a questão em si. Não sei se alguém estará recordado, mas na ocasião pretendi reflectir sobre a forma pacífica como a questão tinha passado na opinião pública.
Hoje, não. Vou deixar claro que acho que é o interesse supremo da criança que tem sempre de prevalecer. Que acho que uma família é uma família, independentemente da orientação sexual dos seus membros. Que acho que um homossexual não tem menos capacidade de amar e cuidar. Que ser pai ou ser mãe vai além do acto de procriar. E que, em particular a co-adopção, é uma questão básica e fundamental de direito!
A esta gente que tomou conta do poder não basta empobrecermo-nos da forma brutal que tem feito. Não basta privatizar, e depois fazer a lei sobre o que é estratégico para o país, quando já nada mais há para privatizar. Não basta cortar na educação e na saúde públicas, para entregar depois a privados, com negociatas e escândalos sempre impunes. Como alguma comunicação social algumas vezes ousa denunciar, para logo ser abafado. Como sucedeu com uma estação de televisão, na denúncia de práticas e ligações de um grupo privado na Educação. Ou com outra, que denunciou os escândalos da facturação à ADSE - que já começamos a pagar, com o agravamento das nossas contribuições, que nos reduzem ainda mais os sucessivamente reduzidos salários – e outras práticas e ligações perigosas do grupo, que entretanto inundava jornais e televisões com publicidade…Não basta cortar ordenados e pensões, enquanto entrega por ajuste directo negócios a uns amigos, e encaminha outros para os melhores lugares internacionais.
Não lhes basta tudo isto. Querem ainda obrigar-nos ao retrocesso civilizacional e à barbárie do vale tudo!
Já aqui escrevi várias vezes sobre o que considero a vergonhosa aprovação da proposta de referendo, na passada sexta-feira. Resisti sempre em escrever o que quer que fosse sobre a atitude da vice-presidente do PSD e do grupo parlamentar, a deputada Teresa Leal Coelho, que se ausentou do hemiciclo na altura da votação e, depois, apresentou a sua demissão da vice-presidência da bancada.
Não é figura por quem nutra especial admiração, já aqui foi de resto referida em circunstâncias pouco abonatórias, personalizando sempre o mais acéfalo seguidismo que a grande maioria dos deputados revela. Um cromo da política!
Fiquei por isso surpreendido. Nunca a imaginaria a desafiar o poder, não a julgava capaz daquela verticalidade que faria supor lealdade a princípios e valores de que a julgaria arredada.
Era no entanto tal a pedra no sapato que nem essa surpresa me levou, apesar da tentação – se há coisa que gosto é de corrigir as minhas próprias impressões quando reconheço que estão erradas –, a louvar a sua atitude e a revelá-la como o raio de luz que brilhou naquela tarde negra do parlamento. Não me arrependo: afinal, quer a proposta quer a fixação da disciplina de voto, tinham sido aprovadas por unanimidade pela Comissão Política Nacional, em 22 de Outubro. Afinal a senhora concordara com aquilo tudo e, vá lá saber-se porquê, mudou depois de ideias…
Está-se sempre a tempo de mudar. Não há mal nenhum nisso, especialmente se for para melhor. Mas um cromo é um cromo!
Da Assembleia da República chegou-nos hoje, mais que mais um motivo de vergonha, a prova insofismável de que este regime, o regime destes partidos e desta gente destes partidos, atingiu a mais profunda e negra decadência. Está podre e a cheirar muito mal!
O referendo proposto pelos rapazolas da JSD, que as linhas com que se cozem os caducos partidos do sistema fazem que seja maioritária no grupo parlamentar, e aprovado por 103 deputados do PSD – e pela abstenção dos deputados do CDS, ao arrepio de tudo o que tinham declarado - que cumpriram a imposta disciplina de voto, revela bem o ponto a que esta partidocracia nos levou.
Onde não há respeito pela democracia nem pelo próprio parlamento, a sua dita casa. Levar a referendo uma matéria a que a Assembleia da República acabou de dar corpo de lei, é um golpe, não tem outro nome. Impor disciplina de voto numa matéria que é claramente do domínio da consciência individual é apenas reforçar o sinal do golpe.
Onde os deputados não são mais representantes de nada que não do aparelho que os comanda. São alforrecas, em vez de gente. Sem espinha que segure um corpo direito não há gente…
Onde não há futuro, porque são jovens, com a vida pela frente, os protagonistas desta pouca vergonha…
Que, evidentemente, não terá por onde passar no Tribunal Constitucional!
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